Juiz Civil – Presidente do Tribunal
de Justiça Militar do Estado de Minas Gerais
Professor Associado da Faculdade de Direito da UFMG
Com a edição da Lei 13.491/2017 os críticos de plantão voltaram a apontar olhares preconceituosos para o Direito Penal Militar e para a Justiça especializada militar. Não surpreendem as manifestações que pretendem deslegitimar as mudanças no conceito de crime militar produzidas pela alteração da redação do inciso II do art. 9º do Código Penal Militar.
Mas, alguns argumentos utilizados na criticas e pelos próprios operadores do Direito Militar (com destaque para o fundamentado artigo de Adriano Alves-Marreiros publicado no observatório) precisam ser esclarecidos. Em especial, importa deixar claro que a proposta de alteração foi apresentada no Senado, por meio do PLS 132, no ano de 2000. A mesma proposta foi objeto de outros projetos de lei e acabou por ser acolhida no mês de outubro de 2017, em um dos projetos. A discussão é antiga e a alteração legislativa chega com muito atraso para corrigir os problemas frequentes, que se apresentam decorrentes do fracionamento do julgamento judicial sobre uma única situação de fato que envolve a atuação concreta de servidores militares.
A incompreensão sobre o Direito Penal Militar, em grande medida, se deve ao discurso equivocado de que o mesmo se presta a tutelar exclusivamente os princípios da hierarquia e da disciplina militares. Desta premissa equivocada decorrem equivocadas conclusões, que normalmente reclamam por restrição da intervenção punitiva aos casos em que exista interesse específicos das instituições militares a tutelar ou restringem direitos aos servidores militares.
Já há muito venho sustentando que muitos operadores do direito militar racionalizam de maneira equivocada as questões relativas à caracterização do crime militar, por se basearem na premissa de que o Direito Militar e a Justiça Militar se prestam unicamente à proteção dos princípios da hierarquia e da disciplina. (Direito Penal: parte geral, item 8.2.1.5)
A Constituição da República estabelece que os princípios da hierarquia e da disciplina são pilares organizacionais das instituições militares, que constituem apenas meios para a realização de seus fins institucionais. Constituem fins das instituições militares da União, conforme o art. 142, a defesa da pátria, a garantia dos poderes constitucionais, e a garantia da lei e da ordem. Por outro lado, constituem fins das instituições militares estaduais, nos termos do art. 144, a preservação da ordem pública, da incolumidade e do patrimônio das pessoas, no contexto do direito fundamental à segurança pública.
Portanto, nem mesmo para as instituições militares a hierarquia e a disciplina constituem um fim em si mesmo. Constituem meios organizacionais peculiares que podem conferir maior eficiência aos serviços públicos prestados pelas instituições militares para o atendimento de suas missões constitucionais. Não podem os operadores da Justiça Militar (que ressaltam sua integração ao Poder Judiciário a partir de 1934), em especial, transformar os princípios organizacionais das instituições militares (meios) em sua missão institucional (fins). Ao Poder Judiciário cabe a garantia dos direitos fundamentais do cidadão, que estão expressos na Constituição e nas leis. Pensar que o Judiciário, no âmbito da Justiça Militar, trabalha para preservar a hierarquia e a disciplina é transformar seus juízes em assessores dos corregedores das instituições Militares.
O próprio Código Penal Militar só tutela os bens jurídicos hierarquia e disciplina em alguns poucos de seus crimes e, por isso, não se pode restringir a lógica da tutela penal militar à proteção desses bens. Um Direito Penal exclusivamente orientado para a tutela da hierarquia e disciplina das corporações militares não é democrático, pois não se presta a tutela direta dos interesses do titular do poder punitivo: o povo.
O Direito Penal Militar regula a intervenção punitiva que objetiva tutelar a qualidade e probidade dos serviços prestados pelas instituições militares em favor da sociedade. A lógica que orienta a Constituição da República e o próprio Código Penal militar, ao distinguir crimes própria e impropriamente militares, é a de que a realização dos serviços militares pode ofender bens jurídicos diversos da hierarquia e disciplina. Fica claro que não interessa proteger apenas a hierarquia e disciplina internas às instituições militares. O Direito Penal Militar se interessa essencialmente por proteger todos os bens jurídicos que possam ser afetados pela realização inadequada dos serviços militares. Nesta perspectiva, não se protege apenas o interesse imediato das corporações militares, mas o interesse da sociedade que é destinatária dos serviços pelas mesmas corporações.
A lógica que sempre ficou evidente pela divisão da parte especial do Código Penal Militar, que é dividida em capítulos que reúnem tipos incriminadores que ofendem preponderantemente determinado bem jurídico e que serve de base para a denominação do respectivo capítulo, continua a orientar a interpretação dos novos crimes militares. Se o crime militar de furto, previsto no art. 240 do CPM, ofende preponderantemente o patrimônio, o novo crime militar de licitação, previsto no art. 89 da Lei 8.666/93, ofende a probidade das contratações realizadas pela Administração Pública militar.
Como se pode facilmente constatar do sistema constitucional brasileiro, as instituições militares, os serviços que tais instituições prestam à sociedade brasileira, o Direito Penal Militar e a Justiça Militar estão inseridas no contexto do Estado Democrático de Direito e sob este prisma devem ser compreendidos. O conteúdo material do crime militar é a conduta socialmente inadequada de militar realizada no contexto de suas atividades e ofende os bens jurídicos portadores de dignidade penal.
* artigo também publicado no Empório do Direito