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Jorge Cesar de Assis

A Lei 13.491/17 e a alteração no conceito de crime militar: primeiras impressões – primeiras inquiet

Jorge Cesar de Assis. Advogado inscrito na OAB-PR, onde é membro da Comissão de Direito Militar. Integrou o Ministério Militar da União e o Ministério Público do Estado do Paraná. Oficial da reserva não remunerada da Polícia Militar paranaense. Sócio Fundador da Associação Internacional das Justiças Militares – AIJM. Membro correspondente da Academia Mineira de Direito Militar. Coordenador da Biblioteca de Estudos de Direito Militar da Editora Juruá. Integrante da Comissão mista de juristas brasileiros e angolanos que elabora um projeto de novo Código Penal Militar para Angola.



A Lei 13.491, sancionada em uma sexta feira 13 do mês de outubro de 2017, viria a alterar sensivelmente o art. 9º, do Código Penal Militar, que é o dispositivo que prevê as circunstâncias em que ocorrem os crimes militares em tempo de paz. A nova lei tem ensejado a discussão sobre vários aspectos que envolvem o crime militar e seu consequente processo.


DA (IN)CONSTITUCIONALIDADE DO DISPOSITIVO LEGAL QUE AUMENTOU O LEQUE DOS CRIMES MILITARES


Pensamos, respeitadas as opiniões em contrário, que a mudança operada no inciso II, do art. 9º, do Código Penal Militar (CPM), não pode ser acoimada de inconstitucional, ela decorreu do devido processo legislativo [ainda que com uma ou outra bizarrice tupiniquim], seguindo o rito estabelecido a partir do art. 59 e seguintes da Constituição Federal.


Nos termos do art. 22, da Carta Magna, parece não haver dúvidas que compete privativamente à União legislar sobre direito penal [aí incluído o direito penal militar]. Também parece não haver dúvidas que, nos termos do art. 61, da CF, a iniciativa de leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou Comissão da Câmara dos Deputados, do Senado Federal ou do Congresso Nacional.


Usando-se uma expressão tão em voga nesses tempos, a Lei 13.491/2017 decorreu da legítima atividade legislativa por parte daqueles que foram escolhidos pela vontade soberana do povo.


Ora, é a própria Constituição Federal quem estabelece as balizas para a definição da competência da Justiça Militar, e o faz em dois momentos distintos: Em relação à Justiça Militar da União, quando diz que “compete à Justiça Militar processar e julgar os crimes militares definidos em lei” [art. 124] e; em relação à Justiça Militar Estadual, ao afirmar que “compete à Justiça Militar estadual processar e julgar os militares dos Estados nos crimes militares definidos em lei” [art. 125, § 4º].


Foi o Constituinte originário [e depois o derivado com a EC 45 quem definiu que os crimes militares haverão, sempre, de estar previstos em lei. E esta lei, é o Código Penal Militar.


Por sua vez, o legislador originário do Código Penal Militar adotou, para a caracterização do crime militar um modelo de tipificação indireta: em primeiro lugar se verificava se o fato a ser analisado estava ou não previsto no CPM, para depois subsumi-lo à uma das hipóteses do seu art. 9º.


Nessas hipóteses originárias, tínhamos, então, uma definição construída pela doutrina acerca da existência de crimes militares próprios e impróprios: Seriam tidos como próprios os previstos no inciso I do art. 9º, “os crimes de que trata este código, quando definidos de modo diverso na lei penal comum, ou nela não previstos, qualquer que seja o agente, salvo disposição especial”, mutatis mutantis, apenas aqueles previstos no Código Penal Militar e que não encontrassem identidade com a lei penal comum. Por sua vez, seriam tidos como impróprios, “os crimes previstos neste código, embora também o fossem com igual definição na lei penal comum, quando praticados: (...). Não é difícil de perceber que os crimes militares impróprios tinham, necessariamente, dupla previsão, no CPM e na legislação penal comum.


Foi a opção do legislador de 1969 estabelecer este sistema de classificação do crime militar. Isto foi alguma novidade de 1969? É claro que não. Esse modelo já se encontrava previsto no art. 6º, do Código Penal Militar de 1.944.


Ora, sendo assim, o legislador da Lei 13.491/2017 não fez nada de ofensivo à Constituição Federal, apenas ampliou a abrangência dos chamados crimes militares. A definição ex vis legis de crime militar continua sendo a mesma, o aumento dos crimes militares que podem ser cometidos pelos integrantes das Forças Armadas e Forças Auxiliares decorreu, unicamente, do fato de que, agora, desde que previstos nas hipóteses do art. 9º do CPM, crimes militares em tempo de paz constituem, os previstos neste Código e, também os previstos na legislação penal. Se vai ser bom ou não, só o tempo dirá. Mas nada existe de inconstitucional.


UMA NOVA CLASSIFICAÇÃO DOUTRINÁRIA PARA OS CRIMES MILITARES


Com o advento da Lei 13.491/2017, houve um impacto no tocante ao conceito de crime militar impróprio. Ao dar ao inciso II, do art. 9º, deste Código uma redação muito mais ampla, a alteração legislativa mudou o conceito até então pacífico sobre o que seria o crime militar impróprio.


Este, sempre se caracterizava quando um fato típico estivesse previsto, ao mesmo tempo no CPM embora também estivesse, com igual definição na lei penal comum. Os exemplos eram facilmente identificáveis: furto, lesão corporal, injúria, difamação, calúnia etc.


Agora, o legislador abandonou a expressão “embora também o sejam com igual definição na lei penal comum”, para agasalhar a expressão “e os previstos na legislação penal”, significando que não mais existe necessidade de identidade de definição penal, criando outra categoria de crime militar, que passa a ser, qualquer crime previsto na legislação penal [Código Penal e legislação extravagante específica]. a ensejar o processo e julgamento por uma Justiça Especial, a castrense. Evidentemente, da Justiça Militar escapam os chamados crimes eleitorais [1], cujo processo e julgamento foi devidamente excepcionado pela Constituição Federal que deu ênfase à sua especialidade [2].


Se um militar das Forças Armadas ou das Polícias Militares, atuando em serviço, cometer um crime eleitoral na forma prevista no Código Eleitoral [p.ex., art. 298, prender ou deter eleitor, membro de mesa receptora, fiscal, delegado de partido ou candidato, com violação do disposto no art. 236], a competência para processo e julgamento será do Juiz da Zona eleitoral, e não da Justiça Militar da União ou Justiça Militar Estadual.


Esta nova categoria de crime militar obviamente não pode ser conceituada como crime militar impróprio, porque estes, em que pese a alteração do inciso II, do art. 9º, continuam a ser aqueles que estão previstos tanto no CPM como na legislação penal comum.


Para Cícero Robson Coimbra Neves, tratam-se de novos crimes militares, aos quais se dará a designação, doravante, de crimes militares extravagantes, por estarem tipificados fora do Código Penal Militar, e que devem, segundo a teoria clássica, conhecer a classificação de crimes impropriamente militares, para, por exemplo, diante de uma condenação com trânsito em julgado, possibilitar a indução à reincidência em outro crime comum que seja cometido pelo autor, antes do curso do período depurador, nos termos do inciso II do art. 64 do Código Penal comum [3].


Data vênia, não concordamos com a designação utilizada por Cícero Coimbra. Os novos delitos militares não podem ser considerados extravagantes, porque o termo, no vernáculo, significa aquilo que está fora do uso geral, habitual ou comum; estranho, excêntrico e, em que pese a categoria destes novos delitos militares não estar contida no Código Penal Militar, a ele se liga por extensão, quando o fato delituoso for cometido por militar e se adequar à uma das hipóteses do inciso II do referido art. 9º. O argumento da indução à reincidência em outro crime comum que seja cometido pelo autor, antes do curso do período depurador, nos termos do inciso II do art. 64 do Código Penal comum também não será suficiente. É que o dispositivo do Código Penal comum, não considera para os efeitos da reincidência, os crimes militares próprios (os que se encontram no inciso I do CPM), em nada aproveitando aos crimes militares impróprios ou, agora, aos novos crimes militares por extensão.


Para Carlos Frederico de Oliveira Pereira, o que realmente importa a caracterizar o comportamento como crime militar, nas situações do artigo 9º, II, não é exatamente o tipo incriminador, mas as próprias situações definidas nessa norma de extensão. São as situações da norma de extensão do artigo 9º que definem o que realmente é atentatório à hierarquia e à disciplina militar. E os tipos do CPM refletem apenas parcialmente a essência dos atos atentatórios aos princípios basilares de funcionamento de qualquer organização militar. O autor lembra o Procurador da República Douglas Araújo, para quem, a inovação legislativa criou uma nova figura jurídica: o crime militar por equiparação à legislação penal comum.[4]


Não nos parece razoável definir essa nova categoria de crimes militares como sendo equiparados à legislação penal comum. Eles não o são. A Lei 13.491/17, em momento algum equiparou crime militar à legislação penal comum, não, ela apenas alterou o critério de caracterização do crime militar, critério esse que foi ampliado, já que, com a nova lei, a norma de extensão [hipóteses do art. 9º do CPM], que antes somente se aplicava aos crimes previstos no Código Penal Militar e que tivessem igual definição na legislação penal comum, teve seu raio de incidência dirigido a qualquer crime da legislação penal, sem necessidade de idêntica previsão na norma castrense.


Portando, temos que a melhor conceituação desta nova categoria de crimes militares é a que foi dada por Ronaldo Roth, ao conceituá-los de crimes militares por extensão, ou seja, os crimes existentes na legislação comum que, episodicamente, constituem-se crimes militares quando preencherem um dos requisitos do inciso II do artigo 9º do CPM [5]. Extensão de quê? Das situações previstas no art. 9º da lei penal castrense.


DA NATUREZA DA LEI 13.491/17


A Lei 13.491/17 tem, ao mesmo tempo, caráter penal e processual. Pode-se afirmar que ela tem um caráter essencialmente penal quando ampliou o leque dos crimes militares, abarcando igualmente os delitos da legislação penal comum quando praticados em condições que o próprio CPM estabelece. E, tem caráter processual sob dois aspectos: o primeiro deles, de discutível técnica legislativa, ao prever, no Código Penal Militar, que os crimes militares contra a vida de civil, praticados por militares, seriam da competência do tribunal do júri [6] e; o segundo, porque em decorrência da nova classificação do crime anteriormente comum para militar, haverá o consequente deslocamento de sua competência para a Justiça Militar, pois será lá que o processo e julgamento deverão ocorrer. É, portanto, uma lei mista, híbrida por assim dizer.


Parece haver uma certa convergência entre os doutrinadores quanto ao caráter da nova lei. Para Fernando Galvão, a norma alterada pela Lei 13.491 que nos ocupa a atenção (inciso II do art. 9º do CPM) é de natureza material, que sequencialmente produz efeitos secundários de natureza processual. A doutrina já identificou as normas de natureza híbrida, nas quais se pode identificar tanto aspectos materiais e quanto processuais. Contudo, no caso da alteração produzida pela Lei 13.491, pode-se constatar que o efeito processual somente se apresenta quando há a caracterização do crime militar. O efeito processual depende da concretização do aspecto material da norma” [7]. Coimbra Neves e Eduardo Cabete também classificam a nova lei como de natureza híbrida.


Para Rodrigo Foureaux, por se tratar de norma que alterou a competência, é de natureza processual e deve ser aplicada imediatamente, na forma do art. 5º do Código de Processo Penal Militar e art. 2º do Código de Processo Penal. Em que pese a alteração ter ocorrido no Código Penal Militar (lei material), tem conteúdo essencialmente processual, o que é denominado de norma heterotópica [8].


Cuida-se de conteúdo processual por tratar da competência da justiça militar, não havendo maiores repercussões quanto à norma penal no tempo, análise de retroatividade para beneficiar o réu ou outras repercussões para o acusado, a não ser o deslocamento da competência para a Justiça Militar. Em se tratando de competência, quando há alteração da competência absoluta, como é o caso, por se tratar da matéria (crime militar), os autos devem ser remetidos imediatamente ao juízo competente (art. 43 do CPC c/c art. 3º, “a”, do CPPM), salvo se já houver sentença.


Assim, todos os processos no país que estejam tramitando na Justiça Comum, quando tiverem sido cometidos por militares em uma das hipóteses do inciso II do art. 9º, do Código Penal Militar devem ser remetidos, imediatamente, à Justiça Militar. Caso o processo já esteja sentenciado, o recurso a ser interposto deverá seguir a competência já disposta. Isto é, se houver sentença proferida pela Justiça Comum, o recurso deverá ser interposto para o Tribunal de Justiça comum. Essa observação se faz necessária somente para os Estados de Minas Gerais, São Paulo e Rio Grande do Sul, pois possuem Tribunal de Justiça Militar. Nos demais estados o recurso a ser interposto já será para o Tribunal de Justiça comum [9], que neles é a segunda instância da Justiça Militar Estadual.


O grande problema da Lei da sexta feira 13, dizemos nós, está em como [com quais efeitos e de que forma] esse processo relativo a um tipo penal constante da legislação penal comum e em andamento na Justiça comum será transportado para a Justiça militar.


Fernando Galvão asseverou não ser possível considerar os aspectos da nova disposição legal separadamente para aplicar apenas o aspecto processual que desloca a competência para a Justiça Militar. Tal deslocamento depende da aplicação do aspecto material do dispositivo. Em outras palavras: somente haverá o deslocamento da competência se houver, antes, a caracterização do crime militar. Tal observação se torna importante nos casos de processos relativos às condutas praticadas antes da entrada em vigor da nova lei. No momento da realização da conduta, se o crime em tese praticado era comum, e não militar, é necessário avaliar se a retroatividade da lei penal que o transforma em militar é possível. Isto porque havendo sucessão de leis penais, a retroatividade somente é possível quando beneficiar o sujeito (art. 2º, § 1º, do Código Penal Militar). E o Código Penal Militar esclarece que para se reconhecer qual a mais favorável, a lei posterior e a anterior devem ser consideradas separadamente, cada qual no conjunto de suas normas aplicáveis ao fato (art. 2º, § 2º).


A posição de Fernando Galvão foi secundada por Eduardo Luiz Santos Cabete, no sentido de que o deslocamento para a Justiça Militar somente se poderá dar se não houver agravamento da situação do réu. Caso contrário, fatos ocorridos antes da sanção da Lei 13.491/17 prosseguiriam em andamento pela Justiça comum [10].


Coimbra Neves aponta, com percuciência, que a consequência dessa inovação no universo dos crimes militares é o seu limite de aplicação trazido pelo inciso XL do art. 5º da Constituição Federal, segundo o qual a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o autor do fato considerado criminoso. Os aspectos processuais, que teriam aplicação imediata, necessariamente seguirão a aplicação do direito material, posto que somente serão avaliados se a nova lei for aplicada, o que ocorrerá apenas nos casos praticados após a sua publicação, salvo em alguma hipótese de lei mais benéfica ou mesmo em que se conclua ocorrer a abolitio criminis.


Para Ronaldo Roth, em relação ao aspecto penal haverá incidência do princípio constitucional da irretroatividade da lei penal mais gravosa (art. 5º, XL, CF), e, em relação ao aspecto processual haverá a aplicação imediata da lei (pelo princípio tempus regit actum), independentemente de ser ou não mais benéfica ao réu, devendo os atuais inquéritos e processos da justiça comum serem remetidos para a justiça militar, como ocorreu inversamente à época da edição da Lei 9.299/96, cujos processos da justiça militar foram remetidos para a Vara do Júri [11].


QUESTÕES DE DIREITO INTERTEMPORAL DECORRENTES DA NOVA LEI


A doutrina já identificou a existência de três correntes doutrinárias acerca da aplicação da nova lei [12], é isso que nos interessa a partir de agora, naqueles processos em andamento na Justiça comum – e mesmo nas investigações em andamento na Polícia Civil.


Pela primeira corrente, haveria uma divisão da norma em duas partes – Aplica-se a parte processual de imediato e a parte penal somente pode ser aplicada aos crimes cometidos após a entrada da lei em vigor. Nesse caso, haveria a alteração da competência e, na Justiça castrense, seria aplicada a norma penal mais benéfica, de acordo com o Código Penal Militar e a legislação penal em geral (posição defendida por Renato Brasileiro, embora com a argumentação de que haveria uma norma heterotópica e não mista ou híbrida, também por Rodrigo Foureux e Ronaldo Roth).


Pela segunda corrente, haveria aplicação por inteiro da norma – A norma não pode ser cindida. Deveria ser aplicada por inteiro a todos os casos, anteriores e posteriores, pois que em um cômputo geral a alteração de competência seria mais benéfica. Essa visão não se sustentaria de forma alguma em todos os casos.


Por fim, a terceira posição defende que a norma não pode ser dividida, mas também não pode ser aplicada aos casos anteriores à sua vigência sempre que contiver matéria penal prejudicial que deve prevalecer quando à aplicação da norma no tempo (posição de Fernando Galvão e Cabette).


Como estamos falando da aplicação da lei penal no tempo, curial que determinemos a espécie da lei nova. Trata-se de novatio legis inovadora, que não prejudica (lex gravior) e nem melhora (lex mitior) a situação do agente que cometeu qualquer um dos crimes previstos na legislação penal comum, e que, por enquadrarem-se em uma das hipóteses do art. 9º do CPM, transformam-se em crimes militares.


Parece que nenhuma das três correntes apresentadas – e poderão surgir outras, conciliatórias, esgota a questão. Persiste a dúvida no tocante à forma da divisão de aplicação dos conteúdos de natureza processual ou penal. Não se pode esquecer que a questão da competência da Justiça Militar é de ordem constitucional e, portanto, absoluta.


Existem pontos sobre os quais não há contradição: ninguém discute que a lei nova, em seu aspecto material, somente poderá retroagir se for em benefício do réu. Também não há dúvidas que em face de seu aspecto processual, todos os processos em andamento deverão ser encaminhados para a Justiça Militar, e que a análise da aplicação da lei mais benéfica deve ser feita na Justiça castrense, salvo se já houver sentença (em relação ao processo já sentenciado, esta é a posição dominante nos tribunais, e Fernando Galvão nos indica como precedentes, no STF o entendimento pode ser examinado na decisão proferida no HC 78.320-SP e no STJ na decisão proferida no julgamento do HC 228856-SP, todos envolvendo casos relativos à Lei 9.299/96 (a lei dos crimes dolosos contra a vida).


Se o magistrado da Justiça comum, irá ou não declinar da competência que detinha até a edição da nova lei, é questão a ser decidida pela instância superior mediante provocação das partes do processo. Em princípio, nos parece que o magistrado deve fazê-lo (declinar), já que se tratando de crime militar não poderá mais conduzir aquele processo.


Esta é a posição do Centro de Apoio Operacional Criminal, Controle Externo da Atividade Policial e Segurança Pública, do Ministério Público do Estado do Ceará, ao consignar, em relação à alteração ocorrida que, “agora, com a alteração, também é crime militar aquele previsto na Lei Penal Comum que não tenha o tipo correspondente no Código Penal Militar e que seja praticado nas mesmas circunstâncias do Art. 9°, II, do CPM.


Em outras palavras, TODOS OS CRIMES, PREVISTOS NO CÓDIGO PENAL MILITAR OU EM LEIS PENAIS COMUNS SERÃO JULGADOS PELA JUSTIÇA MILITAR, DESDE QUE SEJAM PRATICADOS POR POLICIAL MILITAR EM SERVIÇO, NO EXERCÍCIO DA FUNÇÃO. Ex.: crimes de abuso de autoridade, previsto na Lei 4898/1965) ou de tortura (Lei 9455/1997), embora sem previsão expressa no CPM, passam a ser de competência da Justiça Militar Estadual, desde que perpetrados por Policiais Militares [13] no exercício das funções.


Esta mudança é substancial, porque atrairá para a esfera de competência da Justiça Militar (tanto da União como a dos Estados) um número vultoso de casos concretos que antes estavam tramitando na Justiça Comum. Isto significa dizer que todos os militares que estão com processos e apurações de crimes tipificados no Código Penal comum ou em legislações extravagantes, se forem praticados nas condições previstas nas alíneas do inciso II do art. 9° do Código Penal Militar, deverão remeter o referido processo para a Justiça Militar Estadual e do Distrito Federal, a não ser que suscitem a inconstitucionalidade do dispositivo ou mesmo sua inconvencionalidade” [14].


Este posicionamento coincide com a orientação emitida pelo Centro de Apoio Operacional Criminal, do Ministério Público do Estado de Santa Catarina, quando fez constar que, “a despeito de inserida no CPM, trata-se de norma processual de aplicação imediata aos processos pendentes: art. 2º do CPP e art. 5º do CPPM. Necessidade de remessa dos autos de investigação policial e de processos criminais em andamento à Auditoria da Justiça Militar Estadual, quando se tratar de crimes praticados por militares estaduais nas hipóteses das alíneas do inciso II do art. 9º do CPM, até então considerados crimes comuns (tortura, abuso de autoridade, associação para o tráfico de drogas, dentre outros)”.[15]


Coincide, também com a posição da própria Corregedoria da Polícia Civil de Santa Catarina, ao determinar que: “I – quando solicitado, seja registrado Boletim de Ocorrência dos fatos que abranjam a Lei 13.491/17; II – que o BO respectivo, após análise e despacho fundamentado, seja encaminhado ao Batalhão da Unidade do(s) Policial (ais) Militar(es) envolvido(s) nos fatos para as providências pertinentes; III – não se realizem atos apuratórios em relação a crimes militares, devendo, de pronto, serem encaminhados ao Batalhão da Polícia Militar com a devida ciência ao Promotor de Justiça afeto à área de controle externo da atividade policial; IV – que as ocorrências flagranciais envolvendo fatos relacionados à competência da Justiça Militar sejam apresentados ao respectivo Batalhão da Polícia Militar para as medidas cabíveis com a devida ciência ao Promotor de Justiça afeto à área de controle externo da atividade policial; V – que os procedimentos policiais em trâmite na Unidade Policial , sejam, de pronto, encaminhados ao Batalhão da Polícia Militar respectivo, com a devida ciência do Promotor de Justiça afeto à área de controle externo da atividade policial”.[16]


Nos alinhamos, então, à esta primeira posição: todos os processos judiciais e investigações policiais, em andamento, envolvendo militares (federais e estaduais) acusados da prática de crimes comuns, sem previsão no Código Penal Militar – os crimes militares por extensão – e que foram praticados nas condições do art. 9º do Código Penal Militar, deverão ser encaminhados para a Auditoria da Justiça Militar correspondente.


Surge, então, um novo problema: esses crimes militares por extensão, na Justiça Militar, deverão ser “adaptados” à legislação penal e processual penal militar ou, devem manter suas características originais, principalmente aqueles regidos por legislação específica, e que vêm sendo reiteradamente citados, como o abuso de autoridade, a tortura, os crimes hediondos e aqueles previstos na Lei Maria da Penha?


Para nós, os institutos específicos da legislação penal comum devem ser observados pela Justiça Militar exatamente porque não se trata de crimes militares impróprios, mas sim daqueles que convencionamos chamar de crimes militares por extensão. A tarefa, advertimos, não será fácil, e por isso, será demonstrada em dois momentos distintos: o primeiro, referente às investigações policiais em andamento e; o segundo, referente às ações penais em andamento na Justiça comum.


A questão das investigações policiais em andamento nas Delegacias de Polícia


Em razão do que foi visto até aqui, todas as investigações preliminares (inquéritos policiais), que estiverem em andamento, deverão ser encaminhadas para a autoridade de polícia judiciária militar. A toda evidência que isto trás, de imediato, a necessidade de reaparelhamento e aperfeiçoamento do sistema de investigação dos crimes militares, mesmo porque, a demanda não se compõe apenas dos inquéritos policiais em andamento nas Delegacias de Polícia Civil e Federal, mas também dos novos inquéritos policiais militares instaurados a partir do cometimento dos chamados crimes militares por extensão após a edição da nova lei.


Mesmo os que criticam o alcance da Lei 13.491/17, reconhecem que “representa uma significativa ampliação da competência das Justiças Militares da União e dos Estados, que agora terão de dar conta de uma imensa demanda para a qual não estão preparadas e tampouco foram criadas. Esse entulhamento exigirá um substancial investimento na estrutura das Justiças militares e também na própria investigação preliminar no âmbito militar, o que dificilmente ocorrerá a médio prazo. Como se trata de lei processual penal, com aplicação imediata — inclusive para os processos em curso, repita-se —, é evidente que esse deságue inesperado de processos irá gerar grande impacto na administração da Justiça Militar”[17].


Do ponto de vista prático e finalístico, entretanto, essas investigações que estavam em andamento na Delegacia de Polícia – os inquéritos policiais – não irão causar muita preocupação. Ora, os autos da investigação desses crimes militares por extensão ao serem encaminhados para a Auditoria da Justiça Militar (federal ou estadual), irão de imediato para o representante do Ministério Público que atua junto à Justiça Militar, e este, fará o que sempre fez: a análise do inquérito encaminhado pela Polícia Civil onde, dependendo do andamento da investigação, poderá ofertar denúncia desde que o fato se enquadre nas hipóteses do art. 9º do Código Penal Militar, requisitar diligências complementares ou pedir o arquivamento do feito. Claro, sempre poderá alegar a incompetência do juízo militar se entender que não há enquadramento do feito às hipóteses do art. 9º do CPM [18].


Em relação a novos fatos delituosos cometidos por militares, previstos na legislação penal e que se enquadrem no art. 9º, do CPM, a autoridade policial civil, ao tomar conhecimento da ocorrência, deverá de imediato encaminhar a notícia crime para a autoridade policial militar, que deverá, então, instaurar inquérito policial militar.


A questão dos processos por crimes previstos na legislação penal, em andamento na Justiça Comum


Se a questão dos inquéritos policiais em andamento parece não trazer dificuldades, o mesmo não se pode dizer dos processos judiciais por crimes cometidos por militares, instaurados, inicialmente, por crimes previstos na legislação penal comum, sem correspondência no CPM, mas que passaram a se enquadrar em uma das hipóteses previstas no art. 9º, do Código Penal Militar.


Já dissemos, e agora reafirmamos, que esses processos que serão encaminhados, levarão consigo os institutos específicos da legislação penal comum, os quais devem ser observados pela Justiça Militar.


Nos parece extremamente difícil ignorar institutos específicos da lei penal comum em relação à lei penal militar, ou da lei processual penal comum para o processo castrense, aplicando uma menos-valia para aquilo que não for originariamente castrense.


A própria natureza castiça, que sempre se deu ao princípio da especialidade do direito Militar, restou mitigada pela criação dessa nova espécie de crime militar por extensão.


Portanto, analisar a aplicabilidade ou inaplicabilidade dos dispositivos da Parte Geral do CP aos casos em que ocorra um crime militar por extensão, não parece encontrar guardiã em eventual solução simplista a ser dada pelo art. 12 do Código Penal comum, que dispõe que suas regras gerais “aplicam-se aos fatos incriminados por lei especial, se esta não dispuser de modo diverso”.


Quer nos parecer, que por ocasião da edição do referido art. 12 - com a redação que lhe deu a Lei 7.209, de 11.7.1984 - a expressão “lei especial” estava a se referir a um conjunto normativo de natureza especial, mas especial em relação ao Código Penal, como nos casos de leis constantemente citadas sobre a questão em análise, como a que prevê o crime de abuso de autoridade, o crime de tortura, a lei dos crimes hediondos, Maria da Penha etc.


Isto porque, embora o Código Penal comum tenha a previsão dos principais ilícitos penais, as leis acima referidas, dentre outras, também preveem outros ilícitos dignos de relevante tutela penal. Resumindo, abuso de autoridade, tortura, os crimes hediondos e Maria da Penha formam a chamada legislação especial a que se refere o art. 12 do CP, e neles será aplicada a parte geral do CP, se dita legislação especial não dispuser de modo diverso, caso em que prevalecerá a regra especial sobre a regra geral, seguindo o conhecido princípio da especialidade. Mas esta legislação especial, anotamos, pertence ao direito penal comum, o CP não se dirige, em princípio, ao direito penal militar, que é (ou era) um ramo do direito especial por excelência.


Não queremos dizer que os princípios do direito penal comum não se aplicam ao direito penal militar, é evidente que podem ser aplicados ainda que sem lacuna da norma, por uma questão, p.ex., de política criminal, v.g., ao se concluir como fez Cícero Robson Coimbra Neves, que a ignorância ou errônea interpretação da lei penal militar, se for inevitável (escusável) o erro verificado, exclui, ao menos do ponto de vista prático, o dolo da conduta [19]; que a aplicação das regras do direito penal comum aos casos de crime continuado na Justiça Militar tem se baseado em questão de política criminal, “para se evitar uma desigualdade entre os infratores em razões das modificações que ocorreram na parte geral do Código Penal no ano de 1984, e que não alcançaram a parte geral do Código Penal Militar”[20]; que da mesma forma, se a práxis dos tribunais militares tem aceitado a aplicação de princípios do direito penal comum aos crimes militares, por uma questão de política criminal, com muito mais razão é de se aceitar, com base no art. 12 do CP, a aplicação do instituto da cooperação dolosamente distinta aos crimes militares praticados em concurso de agentes, já que a analogia aqui é perfeitamente aceitável, em face de inexistência de previsão similar no Código Penal Militar [21].


Portanto, nos processos em andamento na Justiça comum, decorrente da prática de crime militar por extensão, deverão, obrigatoriamente, ser observados os institutos penais e processuais penais específicos que acompanham o delito cometido. Não há como levar em consideração apenas os diplomas legais do CPM e CPPM, em defesa de um princípio da especialidade castiço, porque essa característica foi sensivelmente mitigada pelo advento da Lei nº 13.491/2017.


Passemos, então a uma análise mais concentrada dos tipos penais já referidos anteriormente.


Abuso de autoridade. Nos termos do art. 6º, da Lei 4.898/1965, o abuso de autoridade sujeitará o seu autor à sanção administrativa civil e penal. O fato deste delito passar a ser considerado como crime militar por extensão, por si só, não terá o condão de desnaturar a lei específica, e o agente continuará sujeito à tríplice responsabilidade, aliás, nos exatos termos dos §§ 1º a 3º do artigo referido, e isso tudo deverá ser aplicado pelo órgão da Justiça Militar, pelo Juiz de Direito na Justiça Militar Estadual [22], pelo Conselho de Justiça na Justiça Militar da União.


Da mesma forma, se nos termos do § 3º do art. 6º da Lei, A sanção penal será aplicada de acordo com as regras dos artigos 42 a 56 do Código Penal [23] e consistirá em: a) multa de cem a cinco mil cruzeiros [24]; b) detenção por dez dias a seis meses; c) perda do cargo e a inabilitação para o exercício de qualquer outra função pública por prazo até três anos. Não se sustenta o argumento de que o CPM não prevê a pena de multa porque, quando de sua edição o Código Penal Militar previa, apenas e tão-somente os crimes militares próprios e impróprios. Da mesma forma, se verificarmos que em alguns Regulamentos Disciplinares das forças militares estaduais, existem penas de natureza pecuniária, v.g., Minas Gerais, São Paulo e Ceará [25], a simples ideia da pena de multa no direito penal militar não deveria causar tanto espanto. A ausência de previsão de pena de multa na legislação penal castrense, apenas reforça a ideia de que a o advento dessa nova classe de crimes militares forçosamente, trará consigo para a Justiça Militar, todos os seus institutos específicos. Se isso vai ser bom ou não, repetimos, o tempo dirá e, se houver culpa, será tão-somente do legislador que a toda evidência desnaturou sensivelmente o conceito de crime militar, com inevitáveis reflexos no direito processual correspondente.


Em relação ainda ao abuso de autoridade, tem sido dado destaque à questão da prescrição, que pelas regras do CP comum passou a ser de 3 anos (CP, art. 109, III), mais severa que a regra do CPM, que se mantém em 2 anos (CPM, art. 125, VII). Neste caso, específico – e por isso que se diz que a análise será feita sempre na Justiça Militar – se transcorrido o período de 2 anos, de forma abstrata, é de se declarar a prescrição com base na lei penal militar (questão de direito material, que no caso concreto irá beneficiar o agente). Há, todavia, um equívoco, ao se afirmar que a Lei 12.234/2010(27)[26] extinguiu a prescrição retroativa no direito penal comum, e que tal espécie vigoraria apenas no direito penal militar.

Já tivemos a oportunidade de nos manifestar sobre as alterações da Lei 12.234/2010 [27], e ali concluir que no direito penal comum, para se usar a expressão de Luiz Flávio Gomes, a prescrição retroativa foi extinta pela metade. Esta prescrição retroativa pela metade (entre a data do recebimento da denúncia e a publicação da sentença) já existia no Código Penal Militar. Com a alteração, o tratamento dado à prescrição retroativa pelo direito penal comum tornou-se mais severo, e agora restou equiparado ao tratamento que lhe é dado pelo direito penal militar. Portanto, não há que se falar em aplicação analógica dos institutos do direito penal comum para o direito penal militar porque a situação entre os dois códigos ficou a mesma. Até a edição da Lei 12.234/2010, era possível pretender o reconhecimento da prescrição retroativa no direito penal militar com base nas regras do direito penal comum, não por via de aplicação analógica já que esta pressupõe uma lacuna que, a toda evidência, nunca existiu, mas sim, por uma questão de política criminal – de igualdade de tratamento, que agora restou impossível de ser aplicada, ante a revogação do parâmetro mais benéfico que era adotado. Quanto ao aumento do menor prazo prescricional (CP, art. 109, inciso VI), que passou de 2(dois) para 3(três) anos, não há que se cogitar de sua aplicação na Justiça Militar. Em primeiro lugar, por ser tal mudança criticável, já que mesmo no direito penal comum estamos falando de infrações de menor potencial ofensivo, o que por si só serve para questionar a validade da alteração. Em segundo lugar, em direito penal não há lugar para aplicação analógica in malam partem, portanto, a nova lei seria prejudicial ao réu da Justiça Militar, ainda que reguladora de caso semelhante.


Crime de tortura. A Lei 9.455/1997 define os crimes de tortura e dá outras providências. Vale lembrar que a tortura tem repulsa constitucional em dois momentos: no inciso III do art. 5º, em favor do cidadão, quando declara que "ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante” e, no art. 5º, XLIII, direcionado agora ao agente criminoso, quando dispõe que “a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem”.


Então, seja no processo por tortura que estiver em andamento na Justiça comum e que venha para a Justiça Militar, seja nos novos processos pelo mesmo delito, é inegável que o Juiz de Direito (Justiça Militar Estadual) ou o Conselho de Justiça (Justiça Militar da União) deverão observar as especificidades, por exemplo, no aumento da pena previsto no § 4º do art. 1º da Lei 9.455/1997; a imediata perda do cargo ou função pública (leia-se posto e patente ou graduação) prevista no § 5º; a característica de ser o crime de tortura inafiançável e insuscetível de graça ou anistia (§ 6º), e o cumprimento inicial da pena em regime fechado (§ 7º).


Crimes hediondos. A Lei 8.072, de 25.07.1990, considerou como hediondos, uma série de crimes previstos no Código Penal comum, consumados ou tentados. Nada disse em relação ao Código Penal Militar.


Carlos Frederico de Oliveira Pereira, discorrendo sobre a Lei 13.491/2017, aduziu que a desatualização da legislação penal militar, na verdade, do ponto de vista da criminalidade astuta, é um verdadeiro convite à corrupção no meio militar. Do ponto de vista da criminalidade violenta, chega ao absurdo de a legislação penal comum melhor proteger o militar do que a própria legislação penal militar, que sequer prevê crime hediondo. Antes da ampliação do conceito de crime militar de que se cuida, matar um militar do EB em Operação de GLO era, perante o CPB, crime de homicídio qualificado, conforme qualificadora criada em 2016, artigo 121, § 3º, VII, e crime hediondo. No CPM sequer existe essa qualificadora. Trata-se de verdadeiro caso de inconstitucionalidade por deficiência da proteção normativa em direitos humanos. Quer dizer, antes da edição da Lei nº 13.491/17, matar em uma operação de GLO um PM ou um militar do EB era crime de homicídio qualificado e, portanto, hediondo, porém, em vista do CPM, era crime de homicídio simples. Esse despropósito foi corrigido. Por força da nova redação do inciso II do artigo 9º ingressam no conceito de crime militar, entre outros tipos, os crimes hediondos, o que poderia ter sido feito há muito tempo com uma simples alteração na redação da Lei 8.072/90. Agora essa tarefa não é mais necessária, por força da revogação tácita, como também ficarão incorporados ao conceito de crime militar qualquer outra alteração na referida lei, desde que o fato tenha enquadramento na norma de extensão do artigo 9º.[28]


Dentro do vetor estabelecido para a análise, há que se definir de que forma, os crimes considerados hediondos, considerados crimes militares por extensão, serão processados e julgados pela Justiça Militar.


Para Carlos Frederico de Oliveira Pereira, ao trazer para o âmbito do CPM os crimes comuns quando a situação fática se enquadrar na norma de extensão do artigo 9º, II, do CPM, com a Lei 13.491/17 aconteceram as seguintes situações: foram introduzidos novos tipos, ou nada se inovou frente a tipos com redação idêntica na legislação militar, ou ainda tornou mais grave a resposta penal para crimes do CPM com definição idêntica aos previstos na lei penal comum, ou mesmo atenuou-se a resposta penal para essa hipótese. Em cada situação dessa vislumbra-se reflexos de sucessão de leis no tempo e aplicação imediata da competência castrense. Vejamos essas situações no tempo. Teremos como referência a data da vigência da Lei 13.491/17, a data da vigência do CPM, do CPB, como também de suas alterações e das leis penais especiais. A aplicação imediata da competência vai acontecer em todas as hipóteses acima. O que poderá variar é a observância da ultratividade ou retroatividade da lei penal mais benéfica.


Para além do exemplo do homicídio considerado hediondo, praticado contra PM em serviço ou militar federal em GLO, já referido acima, podemos imaginar outro crime hediondo praticado por militar, cujo processo esteja em andamento na Justiça comum a ser declinada a competência para a Justiça Militar, p.ex., o crime de estupro de vulnerável, independente do sexo da vítima, e onde não tenha havido conjunção carnal, previsão esta estampada no art. 217-A do Código Penal: ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos, ficando o agente sujeito a uma pena de reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos, tipo penal incluído pela Lei 12.015/2009.


Ora, em termos de rigor na apuração e responsabilização dos agentes, os crimes hediondos estão equiparados à prática da tortura, ao tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e ao terrorismo. Se esse processo hipotético do estupro de vulnerável se deslocar para a Justiça Militar, é possível que, a pretexto de se aplicar a norma mais benéfica ao réu, na justiça especializada o processo se transfigurasse para a figura do atentado violento ao pudor (CPM, art. 233, sujeitando o autor a uma pena de 2 a 6 anos, sem prejuízo da correspondente à violência)? Acreditamos que não, a repulsa do constituinte originário e do legislador posterior ao Código Penal Militar não autoriza essa mudança, principalmente porque em defesa daqueles que a legislação específica considera possuidores da condição peculiar de que crianças e adolescentes como pessoas em desenvolvimento [29]. Nessas circunstâncias, o processo pelo cometimento do crime hediondo se transfere para a Justiça Militar com todas as nuances da Lei 8.072/1990, do Código Penal e do Código de Processo Penal, e, naquilo que couber, observados o Código Penal Militar e o Código de Processo Penal Militar.


Não se trata, reafirme-se, de crimes militares impróprios, com previsão idêntica no CPM e na legislação penal comum, mas de crimes sem previsão na legislação castrense, que não são novos crimes, apenas passaram a ser considerados militares por extensão da norma do art. 9º do código castrense.


Lei Maria da Penha. Uma outra lei específica, cujos casos passam, agora, de forma indiscutível, para a Justiça Militar é a Lei Maria da Penha, não só naquelas hipóteses envolvendo casais de militares como naqueles em que apenas o agressor é militar.


Já tivemos oportunidade de nos debruçarmos sobre a questão [30]. Até o advento da Lei 13.491/2017, era possível encontrar três teorias distintas, a saber:


Pela primeira, qualquer fato delituoso ocorrido entre casal militar da ativa (tendo o marido ou mulher por agente) seria crime militar, por força do art. 9º, II, ‘a’, do CPM, e, dessa forma não se aplica a LMP. A tese privilegia a Justiça Militar. Não há que se falar na mulher como parte mais fraca a merecer tutela especial, sendo que independe do local onde se cometa a infração.


Pela segunda teoria, aceitar que o CPM e o CPPM devem ser aplicados para resolver problemas da intimidade e da vida privada do militar, sem nenhuma relação com a regularidade militar, pode gerar danos irreparáveis à regularidade da instituição família, e assim, ainda que o fato seja cometido entre militares da ativa, se a mulher for a vítima, o crime seria comum, sempre, aplicando-se totalmente a Lei Maria da Penha.


Finalmente, pela terceira teoria, via de regra os fatos delituosos acontecidos entre casal de militares tratam-se de crime militar impróprio, por isso aplica-se a LMP na sua parte protetiva. É uma teoria que concilia a aplicação da lei pela Justiça Militar, ou seja, em alguns casos (não todos), tratar-se-ia de crime militar, a ser processado e julgado pelo Conselho de Justiça, mas a todo tempo poderiam ser aplicadas as medidas protetivas, seja pelo Juiz-Auditor (Juiz de Direito), seja pelo Conselho de Justiça.


Sempre defendemos a terceira posição, conciliatória, se bem que agora, há que se fazer uma releitura, em face do advento dos crimes militares por extensão. Na hipótese de o militar, nas circunstâncias do art. 9º, do CPM, cometer o crime de violência doméstica, previsto no art. 129, § 9º, do CP: Se a lesão for praticada contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade, impondo uma pena de detenção de 3 meses a 3 anos [31], há que prevalecer as normas da Lei Maria da Penha, com todos seus institutos protetivos (suspensão da posse ou restrição ao uso de armas; afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida; a proibição de determinadas condutas; a assistência à mulher vítima de violência doméstica; e, assim mesmo as orientações jurisprudenciais que ela firmou, como a de que a ação penal será sempre pública e incondicionada (STJ, 3ª Seção, Pet. 11.805, relator Min. Rogério Schietti Cruz, julgado em 10.05.2017, unânime). O colegiado já havia anunciado em novembro de 2016 que iria rever o entendimento consolidado por ocasião do julgamento do REsp 1.097.042. À época, em 2010, a 3ª seção definiu que ação penal nos crimes de lesão corporal leve deveria ser condicionada à representação da vítima.[32]


Com base nesse mesmo entendimento, que serve de parâmetro, eventual ocorrência do crime de organização criminosa (Lei 12.850/2013) nos leva à inexorável conclusão de que a autoridade de polícia judiciária militar e a autoridade judicial deverão observar os institutos peculiares da lei, como por exemplo o agravamento da pena e as condições de seu especial aumento (§§ 2º a 4º, do art. 2º); a perda do cargo ou função pública ou eletiva em caso de condenação definitiva (art. 6º); a aplicação da colaboração premiada; da ação controlada; o acesso a registros de ligações telefônicas e telemáticas, a dados cadastrais constantes de bancos de dados públicos ou privados e a informações eleitorais ou comerciais; a interceptação de comunicações telefônicas e telemáticas; afastamento dos sigilos financeiro, bancário e fiscal, nos termos da legislação específica; a infiltração de policiais em atividade de investigação e a cooperação entre instituições e órgãos das três esferas de governo na busca de provas e informações de interesse da investigação criminal (art. 3º, §§ 1º e 2º). Lembre-se que nos casos que levam à caracterização do crime militar por extensão, apenas o inciso II, do art. 9º, do Código Penal Militar é que se apresenta de fundamental importância, no mais deve prevalecer a norma a norma original específica, ainda que para alguns possa parecer um hibridismo indesejável. Parece evidente que, agora, foi exatamente o legislador quem criou essa mistura de normas de ordem material e processual.


Crimes militares de drogas. Dentre os pontos mais controvertidos, decorrentes da edição da Lei 13.491/2017, estão os chamados crimes militares de drogas. Muitas dúvidas, com certeza, passando pela própria identificação e investigação desses novos crimes até seu processamento e julgamento.


Fernando Galvão fez precisas observações sobre a questão. Para ele, as dúvidas somente poderão surgir quando se tratar da caracterização de crimes impropriamente militares. Os crimes propriamente militares são previstos exclusivamente na Parte Especial do Código Penal Militar e, por isso, não há a possibilidade de conflito com tipos previstos na legislação penal comum. Os conflitos somente poderão ocorrer em relação aos crimes impropriamente militares, para os quais exista previsão concomitante no Código Penal Militar e na legislação penal que lhe é extravagante.


Segundo Galvão, nos casos em que a descrição típica do novo crime militar apresentar alguma inovação em relação ao crime previsto no Código Penal Militar, deve-se reconhecer que a previsão legal para o crime militar mais novo (estabelecido com a edição da Lei 13.491/2017) revoga a previsão mais antiga constante do Código Penal Militar. A premissa a ser observada é a de que a previsão mais nova expressa o ponto de vista mais atualizado do legislador sobre o desvalor da conduta criminosa e, por isso, deve substituir o ponto de vista anterior. Nesse sentido, o artigo 2º, parágrafo 1º, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (1) – Decreto-Lei 4.657/42 dispõe que a lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior. A tipificação dos crimes de drogas, com certeza, se apresentará como um dos mais importantes desafios para os operadores do Direito Militar após a edição da Lei 13.491/2017.


O autor aponta de forma segura, que no Código Penal Militar, os crimes de uso e tráfico de drogas encontram previsão conjunta no art. 290 do Código Penal Militar. Na legislação penal comum, os crimes de drogas estão previstos nos artigos 28 e 33 da Lei 11.343/2006, que institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas – Sisnad. Antes da modificação introduzida pela Lei 13.491/2017, predominou entendimento de que os crimes militares de drogas não estavam sujeitos ao Sisnad. Nesse sentido, o Superior Tribunal Militar editou a súmula nº 14, segundo a qual tendo em vista a especialidade da legislação militar, a Lei nº 11.343, de 23 Ago 06, (Lei Antidrogas) não se aplica à Justiça Militar da União.[33]


Da jurisprudência cambiante do STF (para usarmos a expressão de Fernando Galvão) já nos ocupamos anteriormente [34], demonstrando que “com o advento da Lei 11.343/2006 – Nova Lei de Drogas – a jurisprudência do STF passou a demonstrar duas situações bem distintas em relação aos crimes militares de porte de pequenas quantidades de substâncias entorpecentes. Pela primeira, continuou a ser negada a aplicação do princípio da insignificância nesses casos e, pela segunda tal aplicação foi aceita, até mesmo o princípio da especialidade do direito militar passou a ser relativizado, uma vez que se poderia considerar a possibilidade de ser o art. 28 da Lei 11.343/2006 [35] norma penal mais benéfica em relação ao art. 290 do CPM.


Favorável à aplicação tanto do princípio quanto da superveniência da norma penal mais benéfica se posicionou a 2ª Turma do Pretório Excelso [36].


Em sentido contrário, e, portanto, considerando ser o princípio da insignificância inaplicável aos crimes militares de entorpecentes, posicionou-se a 1ª Turma do STF [37].


Pela complexidade da questão, a matéria foi encaminhada ao Pleno do STF, que finalmente decidiu pela inaplicabilidade do referido princípio aos crimes militares do art. 290 do Código Penal Militar quando do julgamento do HC 103.684 [38].


Retornando à posição de Fernando Galvão, deve ser reconhecido que, formalmente, o argumento da especialidade da lei militar sustentou a opção pela punição para os usuários de drogas com base no art. 290 do Código Pena Militar. Materialmente, a motivação que sustentou a aplicação do dispositivo do Código Pena Militar se fundamenta no entendimento de que, no âmbito das instituições militares, a conduta merece punição e não apenas tratamento médico. O argumento formalmente utilizado da especialidade do Código Penal Militar, por outro lado, sustentou a responsabilização muito mais branda do traficante de drogas que realiza a conduta proibida em lugar sujeito à administração militar. Na operação prática do Direito Militar predominou o entendimento que sustenta a aplicação do art. 290 do CPM, porque permite a punição do usuário de drogas e os crimes de tráfico em lugar sujeito à administração militar são raros.


Adverte Galvão, no entanto, que com a mudança promovida pela Lei 13.491/2017, o argumento da especialidade não poderá ser mais utilizado e não é possível sustentar que as normas incriminadoras sejam compatíveis entre si. Realizada a conduta em qualquer das circunstâncias descritas nas alíneas do inciso II do art. 9º, do CPM, o que inclui realizá-la em local sujeito à administração militar (alínea “b”), o crime previsto na Lei 11.343/2006 será militar. Não se poderá sustentar a aplicação do art. 290 do CPM com base na especialidade, pois os crimes previstos na Lei 11.343/2006 também são militares. Também não é possível sustentar a aplicação do referido artigo com base em sua “específica” previsão típica de que a conduta deve ser realizada em local sujeito à administração militar, pois esta também é uma das circunstâncias caracterizadoras do crime previsto na Lei 11.343/2006.


Dessa forma, no conflito aparente que se estabelece entre as normas incriminadoras militares dos artigos 290 do Código Penal Militar, 28 e 33 da Lei 11.343/2006, deve prevalecer as disposições mais recentes da Lei 11.343/2006. A rigor, não se trata de um concurso aparente de tipos incriminadores, mas de saber que a previsão típica posterior revoga a previsão típica anterior. Importa ainda notar que a Lei 11.343/2006 instituiu o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas – Sisnad, que estabelece a posição mais atualizada sobre o tema das drogas, é manifestamente incompatível com o art. 290 do CPM e que regula toda a matéria sobre drogas.


Galvão sustenta não ser juridicamente possível sustentar a validade do art. 290 do CPM diante da nova realidade jurídica que incorporou, como militares, os crimes previstos na Lei 11.343/2017. Por isso, com base no artigo 2º, parágrafo 1º, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – Decreto-Lei 4.657/42, deve-se concluir que a previsão para os crimes da Lei 11.343/2017 revogaram o tipo incriminador do art. 290 do Código Penal Militar.


Um argumento que nos pareceu bem colocado na análise do referido autor, é o de que a forte rejeição à conduta do usuário de drogas no ambiente militar e expectativa que se consolidou no sentido de sua punição pela Justiça Militar não pode superar a lógica jurídica da sucessão de tipos incriminadores no tempo. Não se pode resolver o problema identificado com base no critério de que o art. 290 do CPM estabelece tratamento mais gravoso ao usuário de drogas. Se o uso de drogas em lugar sujeito à administração militar evidencia a necessidade de tutelar criminalmente a disciplina nas instituições militares, tal tutela deve operar-se por meio da caracterização de outro tipo incriminador, como por exemplo o que estabelece o crime de inobservância de lei, regulamento ou instrução (art. 324 do CPM). Por outro lado, nada impede que o militar usuário de drogas que seja flagrado em lugar sujeito à administração militar seja responsabilizado administrativamente pela conduta inadequada e, até mesmo, seja excluído da instituição militar.


Galvão nos aponta que o Supremo Tribunal Federal já reconheceu que a exclusão da instituição militar do usuário de drogas é possível e expressa medida suficiente para a preservação da hierarquia e disciplina (HC 92.961), e dessa forma a responsabilização administrativo/disciplinar pode tutelar, e com muito mais eficiência do que a penal, os pilares organizacionais das instituições militares. No que diz respeito o novo crime militar de tráfico de drogas, previsto no art. 33 da Lei 11.343/2006 combinados com o inciso II do art. 9º do CPM, a incriminação ficou sensivelmente mais gravosa. O novo tipo apresenta 18 verbos descritivos de condutas proibidas, acrescentando 7 novas condutas em relação à previsão anterior constante do art. 290 do Código Penal Militar. A pena cominada é de reclusão, de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e multa de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa. O tipo previsto no art. 33 da Lei 11.343/2006 é mais completo do que expresso pelo art. 290 do CPM, na medida em que contém todas as condutas descritas no art. 290 e ainda acrescenta outras 7 para formar o complexo de condutas relevantes no que diz respeito ao tema das drogas. A posição mais atualizada em relação ao tráfico de drogas, certamente, é incompatível com a previsão mais branda constante do art. 290 do CPM e, por isso, a revoga. O autor conclui não ser possível admitir, data vênia, a posição que já aponto na doutrina de que o art. 290 do CPM é compatível com os tipos incriminadores da Lei 11.343/2006, de modo que a incriminação da referida lei somente teria lugar nas hipóteses não previstas no art. 290 [39]. Tal entendimento desconsidera a lógica da sucessão de tipos incriminadores no tempo e institui uma terceira forma de incriminação típica, formada em parte pelo tipo constante do Código Penal Militar e em outra parte pelos tipos estabelecidos na Lei 11.343/2006. Tal construção é juridicamente impossível. A interpretação do operador do Direito Penal Militar não pode inovar a legislação incriminadora para criar uma figura típica que atenda às suas expectativas [40].


As questões atinentes aos novos crimes militares de tortura, daqueles de natureza hedionda e dos crimes de drogas revelam, desde o início, as dificuldades pelas quais o operador do Direito da Justiça Militar irá se defrontar daqui para a frente. Será tarefa árdua, advertimos, e os tribunais terão imenso trabalho para pacificar todos esses temas.


Mas para a investigação dessa nova classe de crime militar – os crimes militares por extensão – reafirmamos, deverá ser considerado que, havendo lei específica à toda evidência que ela tem de ser observada, e, por consequência o Código de Processo Penal comum e mesmo o Código Penal, por se tratarem de legislações mais modernas e afinadas com os novos institutos que são inexistentes no Código Penal Militar e no Código de Processo Penal Militar deverão, sem sombra de dúvida, ser levados em conta também.


ALTERAÇÃO DO ENTENDIMENTO SUMULAR DOS TRIBUNAIS


Não resta dúvida de que haverá uma significativa alteração do entendimento sumular dos tribunais. Debruçando-se sobre o tema, Rodrigo Foureaux enumerou: A Súmula 90 do STJ que prevê que “Compete à Justiça Estadual Militar processar e julgar o policial militar pela prática do crime militar, e à Comum pela prática do crime comum simultâneo àquele.” perdeu a validade, uma vez que não haverá mais crime comum simultâneo ao crime militar; A Súmula 172 do STJ que dispõe que “Compete à Justiça Comum processar e julgar militar por crime de abuso de autoridade, ainda que praticado em serviço.”, igualmente, perdeu a validade, uma vez que os crimes de abuso de autoridade passam a ser julgados pela Justiça Militar. A Súmula 75 do STJ que diz que “Compete à Justiça Comum Estadual processar e julgar o policial militar por crime de promover ou facilitar a fuga de preso de estabelecimento penal.” perdeu a validade, uma vez que o militar ao promover ou facilitar a fuga de preso de estabelecimento penal comum estará em serviço ou atuando em razão da função, o que, obrigatoriamente, remete a competência para a Justiça Militar; A Súmula 06 do STJ que assevera que “Compete à Justiça Comum Estadual processar e julgar delito decorrente de acidente de trânsito envolvendo viatura de Polícia Militar, salvo se autor e vítima forem policiais militares em situação de atividade.”, deve ser lida com cautela, na medida em que mesmo que o crime cometido seja previsto no Código de Trânsito Brasileiro, se cometido por militar em serviço, deverá ser julgado pela Justiça Militar [41].


E como fica a Súmula Vinculante nº 36: “Compete à Justiça Federal comum processar e julgar civil denunciado pelos crimes de falsificação e de uso de documento falso quando se tratar de falsificação da Caderneta de Inscrição e Registro (CIR) ou de Carteira de Habilitação de Amador (CHA), ainda que expedidas pela Marinha do Brasil”?


Quer parecer, em um primeiro momento, que SV 36 permanece íntegra, pois ela se dirige ao civil (e não ao militar) e, em que pese os documentos que a súmula abrange serem expedidos pela Marinha, a fiscalização propriamente dita se faz mediante atividade de polícia marítima, cuja competência constitucional, como decidido pelo Supremo Tribunal Federal é da Polícia Federal, nos termos do art. 144, § 1º, inciso III. Ademais, sendo vinculante, terá efeito erga omnes até que seja revista ou cancelada pelo próprio STF (CF, art.103 – A e §§).


Por sua vez, a Súmula nº 14 do Superior Tribunal Militar [42] (Tendo em vista a especialidade da legislação militar, a Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006, que instituiu o sistema Nacional de Políticas públicas sobre Drogas, não se aplica à Justiça Militar da União), conforme aventado por Fernando Galvão, com o advento da Lei 13.491/2017, merecerá uma reavaliação de sua efetiva validade.


São estas, de forma despretensiosa, nossas primeiras observações sobre a Lei nº 13.491/2017. Haverá outras tantas questões importantes a elucidar, como por exemplo a aplicação ou não do instituto da fiança nos crimes militares por extensão, a reavaliação da aplicação da Lei dos crimes de menor potencial ofensivo na Justiça Militar (a exceção talvez, dos crimes propriamente militares), a questão sempre tormentosa da investigação dos crimes dolosos contra a vida e a fixação da competência para julgamento deles quando cometidos por militares das Forças Armadas e assim por diante.

Mas isso será assunto para uma nova discussão para a qual se concita a comunidade jurídica.







NOTAS


[1] Código Eleitoral, Lei 4.737, de 15.07.1965: (...) Art. 35. Compete aos juízes: (...) II - processar e julgar os crimes eleitorais e os comuns que lhe forem conexos, ressalvada a competência originária do Tribunal Superior e dos Tribunais Regionais. Os crimes eleitorais estão previstos entre os artigos 289 a 354-A, da Lei 4.737, de 15.07.1965, que institui o Código eleitoral.


[2] Nesse sentido, vide as ressalvas da Constituição Federal, artigos: 96, III; 105, I, ‘c’, ‘h’; 108, I, ‘a’; 109, I e IV.


[3] NEVES, Cícero Robson. Inquietações na investigação criminal militar após a entrada em vigor da Lei n. 13.491, de 13 de outubro de 2017, Revista Direito Militar nº 126, Florianópolis: AMAJME, setembro a dezembro de 2017, pp. 23-28.;


[4] PEREIRA, Carlos Frederico de Oliveira. A Lei nº 13.491, de 13 de outubro de 2017, e os crimes hediondos. Palestra proferida no “Workshop sobre a atuação do MP na Justiça Militar”, ocorrido em Brasília-DF, em 20 e 21 de novembro de 2017. Disponível em http://www.mpm.mp.br/portal/wp-content/uploads/2017/11/lei-13491-crimes-hediondos.pdf acesso em 09.12.2017.


[5] ROTH, Ronaldo. Os delitos militares por extensão e a nova competência da Justiça Militar (Lei 13.491/17), Revista Direito Militar nº 126, Florianópolis: AMAJME, setembro a dezembro de 2017, pp. 29-36.


[6] Essa discutível técnica legislativa, já vinha desde a Lei 9.299/96, tendo sido repetida pela Lei 12.432/11.


[7] GALVÃO, Fernando Galvão. Natureza material do dispositivo que amplia o conceito de crime militar e o deslocamento dos inquéritos e processos em curso na Justiça Comum para a Justiça Militar, disponível em https://www.observatoriodajusticamilitar.info/single-post/2017/11/23/Natureza-material-do-dispositivo-que-amplia-o-conceito-de-crime-militar-e-o-deslocamento-dos-inqu%C3%A9ritos-e-processos-em-curso-na-Justi%C3%A7a-Comum-para-a-Justi%C3%A7a-Militar acesso em 10.01.2018.


[8] Renato Brasileiro também identifica o fenômeno da heterotropia na Lei 13.491/17. No mesmo sentido, Ronaldo Roth, ibidem, ibidem.


[9] FOUREAUX, Rodrigo. A Lei 13.491/17 e a ampliação da competência da Justiça Militar. Disponível em http://jusmilitaris.com.br/sistema/arquivos/doutrinas/AmpliacaoCrimeMilitarFoureaux.pdf acesso em 17.12.2017.


[10] CABETTE, Luiz Eduardo Santos. Crimes militares e a Lei 13491/17 em relação ao direito intertemporal

Disponível em https://www.observatoriodajusticamilitar.info/single-post/2017/12/03/CRIMES-MILITARES-E-A-LEI-1349117-EM-RELA%C3%87%C3%83O-AO-DIREITO-INTERTEMPORAL acesso em 10.01.2018.


[11] ROTH, Ronaldo, ibidem.


[12] CABETTE, ibidem.


[13] O mesmo raciocínio se aplica aos militares das Forças Armadas.


[14] Ministério Público do Estado do Ceará. Centro de Apoio Operacional Criminal, Controle Externo da Atividade Policial e Segurança Pública. Ofício-Circular nº 83/2017/CAOCRIM/PGJ-CE, Fortaleza, 06 de novembro de 2017, dirigido aos promotores e procuradores de justiça com atuação criminal.


[15] Ministério Público do Estado de Santa Catarina – Centro de Apoio Operacional Criminal. Solicitação de apoio nº 047/2017-CCR – SIG/MP nº 05.2017.00047808-7 – Origem: 8ª Promotoria de Justiça da Comarca de Balneário Camboriú, Florianópolis, 25.10.2017.


[16] Delegacia-Geral de Polícia Civil de Santa Catarina – Corregedoria da Polícia Civil – Provimento nº 04/2017, Florianópolis, 23.11.2017.


[17] JUNIOR, Aury Lopes. Lei 13.491/2017 fez muito mais do que retirar os militares do tribunal do júri, disponível em https://www.conjur.com.br/2017-out-20/limite-penal-lei-134912017-fez-retirar-militares-tribunal-juri acesso em 10.01.2018.


[18] CPPM, art. 398. O procurador, antes de oferecer a denúncia, poderá alegar a incompetência do juízo, que será processada de acordo com o art. 146.


[19] NEVES, Cícero Robson Coimbra. Erro de Direito – Uma abordagem Sistemática. Revista Direito Militar. Florianópolis, n. 39, jan./fev. 2003, p. 25.


[20 ]ROSA, Paulo Tadeu Rodrigues. Código Penal Militar Comentado – Parte Geral. Belo Horizonte: Líder, 2009. p. 183-184.


[21] ASSIS, Jorge Cesar de. Comentários ao Código Penal Militar, 9ª ed., Curitiba: Juruá, 2014, p. 283.


[22] Que por definição constitucional julga os crimes militares praticados contra civis, com exceção dos dolosos contra a vida (CF, art. 125, § 5º).


[23] A Lei do abuso de autoridade refere-se ao Capítulo da aplicação da pena, previsto entre os artigos 42 a 56, do Código Penal anterior à reforma da Parte Geral. Atualmente a aplicação da pena está prevista entre os artigos 59 a 76 do CP, e deve ser observada em relação à fixação da pena do agente do crime de abuso de autoridade.


[24] A aplicação da pena de multa deve seguir os parâmetros fixados pelo art. 60 e §§, da nova Parte Geral do Código Penal.


[25] Na pena de suspensão até 10 dias, prevista no art. 31 do Código de Ética dos Militares de Minas Gerais, os dias de suspensão não serão remunerados, perdendo o militar todas as vantagens e direitos decorrentes do exercício do cargo, encargo ou função. No mesmo sentido, a “pena de detenção”, prevista no art. 20, do Regulamento Disciplinar da Polícia Militar de São Paulo (LC 893, de 09.03.2001), que além de restringir a liberdade gera efeitos secundários: o militar não fará jus aos direitos e vantagens decorrentes do serviço, não contando tempo de serviço, e sofrendo desconto dos dias detidos, já que o PM não participa de qualquer serviço, instrução ou atividade. Também na custódia cautelar do Código de Disciplina do Ceará (art. 20).


[26] CP, art. 110, § 1º A prescrição, depois da sentença condenatória com trânsito em julgado para a acusação ou depois de improvido seu recurso, regula-se pela pena aplicada, não podendo, em nenhuma hipótese, ter por termo inicial data anterior à da denúncia ou queixa. (Redação dada pela Lei nº 12.234, de 2010).


[27] ASSIS, Jorge Cesar de. As alterações no prazo prescricional da pretensão punitiva trazidas pela Lei nº 12.234, de 05 de maio de 2010 e seus reflexos na Justiça Militar. Revista Direito Militar nº 85, Florianópolis, setembro/outubro de 2010, p.26-28. Disponível em http://jusmilitaris.com.br/sistema/arquivos/doutrinas/prescrretrocpm.pdf


[28] PEREIRA, Carlos Frederico de Oliveira. A Lei nº 13.491, de 13 de outubro de 2017, e os crimes hediondos, ibidem.


[29] Lei 8.069/1990 - Estatuto da Criança e do Adolescente, art. 6º.


[30] ASSIS, Jorge Cesar de. CASAL DE MILITARES: LEI MARIA DA PENHA E A APLICAÇÃO DE SEUS INSTITUTOS PROTETIVOS AO DIREITO CASTRENSE. Superior Tribunal de Justiça – Biblioteca Ministro Oscar Saraiva, Revista Violência contra a Mulher – Bibliografias selecionadas. Novembro de 2016, p.3. Disponível em http://www.compromissoeatitude.org.br/wp content/uploads/2016/11/stj_bibliografia_violencia_contra_mulher.pdf


[31] Com a redação dada pela Lei 11.340/2006.


[32] Súmula 542/STJ – A ação penal relativa ao crime de lesão corporal resultante de violência doméstica contra a mulher é pública incondicionada (DJE: 31/08/2015)



[33] GALVÃO, Fernando. Novos crimes militares de drogas. Disponível em https://www.observatoriodajusticamilitar.info/single-post/2018/01/12/Novos-crimes-militares-de-drogas acesso em 18.01.2018.


[34] ASSIS, Jorge Cesar de. Comentários ao Código Penal Militar, 9ª edição, Curitiba: Juruá, 2014, p. 70.


[35] Lei 11.343/2006, art. 28: quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas: I – advertência sobre os efeitos das drogas; II – prestação de serviços à comunidade; III – medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.


[36] STF, 2ª T.: HC 91.356; HC 92.961; HC 94.809.


[37] STF, 1ª T.: HC 91.759; HC 91.767; HC 94.649.


[38] STF, Pleno, HC 103.684/DF, Rel. Min. Ayres Britto, j. em 21.10.2010, DJe de 13.04.2011 No mesmo sentido: STF, Pleno, HC 94.685/CE, Relª. Min. Ellen Gracie, j. em 11.11.2010, DJe de 12.04.2011.


[39] ROTH, Ronaldo João. Os delitos militares por extensão e a nova competência da Justiça Militar, Revista Direito Militar .... p. 32.


[40] Galvão, Fernando. Novos crimes militares de drogas, ibidem.


[41] FOUREAUX, Rodrigo, ibidem.


[42] Publicada no DJe nº 149, de 02.09.2014.

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