Artigo produzido pela equipe de Gestão Documental do TJMMG: 2º Sgt PM Nayana de Souza Ramos Cb BM Lucélia Moreira Santos Assistente Adm. Adrieli Lucchette Ferraz Assistente Adm. Leonardo F. M. de Souza Assistente Adm. Marileide Alves Rocha Assistente Adm. Rodolfo Morais Medina
1800 - O Contestado entre Minas Gerais e Espírito Santo
A história do Contestado tem suas raízes em 8 de outubro de 1800, entre os estados de Minas Gerais e Espírito Santo, quando foi instituído uma demarcação, motivado pela abertura do Rio Doce à navegação.
Um século depois, em 18 de outubro de 1904, os dois estados adotaram como linha divisória, ao norte do Rio Doce, a Serra dos Aimorés ou do Souza, que, com o tempo e confusão de denominações, se tornou o real ponto da discórdia.
Minas Gerais reconhecia que a Serra dos Aimorés estava situada em Água Branca, no Espírito Santo, os capixabas rechaçavam, afirmando que era em Conselheiro Pena, em Minas. E, nesse meio, ficou esta região contestada por ambos.
Em 1914, o Supremo Tribunal Federal (STF) asseverou a Serra dos Aimorés como divisor oficial dos dois estados. A partir de então, o clima de medo, insegurança e ameaças eclodiu entre mineiros e capixabas. Conta a história que “toda localidade tinha dupla jurisdição, convivendo uma autoridade do Espírito Santo e outra de Minas. Quem torcia por Minas, registrava o filho em cartório mineiro, e quem era a favor do Espírito Santo fazia o contrário”.
Em meio a essa guerra fria, a zona do Contestado era um território de 10 mil km2 que, desde 1903, estava sendo disputado litigiosamente pelos governos do Espírito Santo e de Minas Gerais.
Adilson Vilaça informa que:
“(...) o Contestado era uma verdadeira terra sem lei, com muitos povoados sob jugo de dupla jurisdição, mineira e capixaba, e maior quantidade sem jurisdição alguma”. Sendo assim, continua o pesquisador, “a lei do mais forte fez império. Ocorreram ao abrigo do Contestado criminosos de longínquos recantos. Desgarrados, aproveitadores, jagunços, charlatões, mascates, tropeiros e levas de sem-terra moviam-se na mira das enfurecidas polícias estaduais que tentavam, com pouco sucesso e uso de muita arbitrariedade, fazer prevalecer a ordem. (...) Nem sequer os padres se entendiam, engalfinhando-se na disputa fronteiriça – padres mineiros e capixabas hostilizavam-se publicamente (...)”.
As tropas mineiras e capixabas em prontidão. O clima de tensão e de um iminente combate se espalhou entre os militares e a população. Anos de apreensão e entrincheiramento.
Soldados mineiros montam guarda na divisa com o estado capixaba.
Militares entrincheirados no mato, nas periferias da cidade, sem banho, alimentado-se precariamente numa cozinha improvisada.
Capa do Livro: Limites (Acordo entre Espírito Santo e Minas Gerais), 1963
Apesar de não haver confronto direto entre as tropas mineiras e capixabas, a questão dos limites deixou um saldo grande de vítimas, tanto civis e militares, e o número total de mortes ainda é incerto. Em 1958, os dois governos retiraram as tropas da região e iniciaram as negociações com base em laudos periciais.
Governador Francisco Lacerda de Aguiar pelo ES e Governador José de Magalhães Pinto, por MG.
O Processo no 895 do Tribunal de Justiça Militar de Minas Gerais
A cidade de Ataléia – Minas Gerais
As primeiras notícias que se tem do povoamento do atual município, datam de 1928 quando chegava à região Vicente Pedroso dos Santos, vindo de Teófilo Otoni, fazendo as primeiras derrubadas e construindo sua habitação. Dois anos depois, chegaram outras famílias. Vicente Pedroso dos Santos doou uma área de três alqueires de terra para a instalação do comércio e a construção da Igreja.
O garimpo foi a principal causa da ocupação do atual município, para lá atraindo grande número de pessoas.
A origem do topônimo deve-se ao fato de o município ter sido ponto de observação e vigilância quando, o então Governador do Estado de Minas Gerais Dr. Benedito Valadares Ribeiro, criou uma expedição com a finalidade de estudar a emancipação dos povoados fronteiros com o Estado de Espírito Santo. (Fonte: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/mg/ataleia/historico)
Uma história nunca antes contada
Em meio às turbulências e tensões causadas pelo Contestado e a animosidade entre Minas Gerais e Espírito Santo, a Força Policial do Estado determinou o deslocamento de militares, oriundos das mais diversas partes do Estado mineiro, com destino às cidades próximas às fronteiras com o Estado capixaba.
Em 09 de junho de 1948 – Comandando um grupo de combates, o 2º Sgt Mario Alves de Matos, saiu de Belo Horizonte - MG, juntamente com o Cabo Antônio Candido dos Santos e os Soldados Francisco de Oliveira, Martins Machado, Pedro Alves do Santos, Espedito Alves Ferreira, José Januário, Darci Alves de Oliveira, José Teodoro Jardim, Alvino Nicolau Alves, João Gomes Sampaio e Antônio Ferreira de Souza.
O contingente chegou com a missão de permanecer na Fazenda Joel, distante de Ataléia a 2 quilômetros.
Era mês de julho de 1948, mas o calor típico da região não dava trégua. Por todo lado se avistava a poeira vermelha, o cheiro da cachaça, pinga e bagaceira estavam no ar, enquanto os homens sertanejos, cabra-da-peste se entreolhavam em um clima hostil, numa terra marcada pobreza do nordeste de minas e pela tensão iminente de um confronto.
As 564 páginas do Processo no 895, contariam com riquezas de detalhes o que ocorrera na tarde do dia 10 de julho de 1948.
Por volta das 13:00 horas, o 2º Sgt João Batista de Lima encontra nas proximidades do quartel de Ataléia com o Tenente Jose Rodrigues Vaz, anunciando que havia prendido há algum tempo naquela manhã, o Sd Alvino Nicolau Alves, por, estando alcoolizado, agredido aquele comandante, esmurrando com socos e ponta-pés.
Segundo consta nos autos, no depoimento da testemunha 2º Sgt João Batista de Lima, “(...) o depoente faz questão de frisar que o senhor Tenente Olavo amarrara o soldado em referência devido o xadrez não oferecer nenhuma resistência (...)”.
O clima não era amistoso no interior do aquartelamento.
A ação do Comandante com a prisão do soldado Alvino causou revolta a um grupo de combatentes, que, alcoolizados, já não faziam juízo de si mesmos.
Liderados pelo Cabo Antônio Candido, Ataléia viria, a partir daquele momento, o maior fuzilamento que sua história já assistira.
Revólveres, fuzis, cartuchos e mais cartuchos de munição...
Em direção ao quartel, marcharam. E em meio ao poder de fogo, ouviu-se o Cabo Candido, em uma voz forte e imponente dizer: “Atenção grupo, para o combate, marche, MARCHE!”
Nas imediações da Igreja Matriz de Ataléia, o grupo se separou.
Foto do arquivo da Igreja Católica de Ataléia
As Ruas Governador Valadares e Doze de Março eram à direita e à esquerda do quartel da Polícia. O contingente se dividiu.
O soldado Jose Teodoro Jardim assumiu o papel de fuzileiro. Os soldados Expedito e Darci como municiadores.
O quartel foi cercado. Começaria o massacre. Em um ato de bravura impensado, o Sgt Austerlí Marques tentou desarmar o Soldado Pedro, sem triunfo. Aos gritos, o sargento percorreu a caserna implorando que não atirassem, rogou ao Cb Candido que não procedesse daquela maneira, que colocaria o Soldado Alvino em liberdade.
Não adiantou.
O soldado Pedro conta que, o militar, fatalmente atingido, rodou em torno de si e caiu morto transpassado por um projétil. Réu confesso, o tiro foi deflagrado pelo Cabo Candido.
Vítima do mesmo infortúnio, o Soldado Faustino Caetano do Rosário, que corria suplicando que parassem e esperassem. Ao ver tombar o Sgt Austerlí, aproximou-se do Cabo Antônio e colocando a mão sobre o seu ombro, pediu-lhe calma. Infeliz. Num gesto rápido e selvagem, contra ele disparou seu fuzil. Era o segundo combatente a prostrar-se.
Ouviu-se uma curta rajada de arma automática.
Do flanco esquerdo, frente e retaguarda e do flanco direito a retaguarda surgiam tiros.
No trecho do depoimento do Tenente Jose Rodrigues Vaz:
“(...) O soldado Isaltino apanhou o fuzil e fez fogo contra os ataques, vindo porém a tombar mortalmente atingido por um projétil; que se encontravam ali o cabo Couto e o Soldado Ozires escaparam correndo, deixando ali o ofendido (...).
Um verdadeiro cenário de guerra.
O soldado Pedro e Espedito penetraram no quartel para soltar o soldado Alvino, motivo de todo o ataque.
Num ato de desespero e aos gritos, dentro do quartel o Soldado Jose Rodrigues Vaz, foi recebido a tiros, mas sem pontaria, o Cabo Candido dessa vez não tombou mais uma vítima.
Mas ainda não estaria à salvo. Espancado com um fuzil pelo Soldado Pedro, caído ao chão, recebeu um disparo.
A porta da prisão improvisada fora arrombada. O motivo da carnificina foi alcançado. O soldado Alvino estava livre.
03 policiais mortos e um que, gravemente ferido, faleceu após.
Sangue... homicídios... munições... armas... um rastro de violência desmedida.
Entrincheiraram-se na Fazenda do Joel. Cachaça... pinga... os autores dispostos a levar às últimas consequências as suas medidas.
(...) que mais ou menos em meio do caminho, o soldado Alvido lamentou a morte do Sargento Austerlí, dizendo porque haviam feito isso, pois o sargento era tão bom e seu amigo, tendo o cabo respondido: “quem matou três ou quatro não faz questão de matar cinco” e sacando o revólver para cima, pedindo-lhe que não fizesse aquilo (...) (...) o pedido foi atendido pelo cabo (...)”. (...) ao escurecer o grupo desapareceu, tomando rumo ignorado, conduzindo todo armamento e munição a seu cargo (...)”.
Há quarenta e dois quilômetros de Ataléia o contingente foi surpreendido em um rancho, dois dias após quando rumavam em marcha para a cidade de Teófilo Otoni, presos, sem oferecer nenhuma resistência.
Folhas 105 do Processo no 895 de 1948 - TJMMG
Sentença
O processo seguiu seu trâmite legal, sendo todos os envolvidos apenados.
- Ex-Cabo Antonio Candido dos Santos - 29 anos e dois meses de reclusão.
- Ex-soldado Joao Gomes Sampaio - 18 anos e 8 meses de reclusão.
- Ex-soldado Jose Januário - 18 anos e 8 meses de reclusão.
- Ex-soldado Darci Alves de oliveira - 17 anos e 6 meses de reclusão.
- Ex- soldado Espedito Alves Ferreira - 16 anos e quatro meses de reclusão.
- Ex-soldado Jose Teodoro Jardim - 17 anos e seis meses de reclusão.
- Ex-soldado Antonio Ferreira de Souza - 18 anos e 8 meses de reclusão.
- Ex-soldado Pedro Alves dos santos - 24 anos de reclusão de reclusão.
- Ex-soldado Francisco de Oliveira - 19 anos de reclusão de reclusão
“Quando o comandante demonstrar fraqueza, não tiver autoridade, suas ordens não forem claras e seus oficiais e tropas forem indisciplinados, o resultado será o caos e a desorganização absoluta. “ Sun Tzu
Perdida a autoridade do Comandante legalmente instituído, o Cabo Antonio Candido colocou em ação um exército motivado pela raiva e um líder jamais deve iniciar uma guerra motivada pela ira.
Dominados pela revolta e em meio ao alcoolismo desenfreado, o massacre de Ataléia entra para a história e constrói, pela primeira vez escrita, sua página mais sangrenta.
LINHA DO TEMPO
1904 – Minas e Espírito Santo adotam uma linha divisória, ao norte do Rio Doce, tendo a Serra dos Aimorés como limite. 1911 – Um convênio entre os estados confirma os limites na Serra dos Aimorés ou Souza, gerando confusão na região devido à dupla denominação do maciço. 1914 – Supremo Tribunal Federal (STF) ratifica os limites na Serra dos Aimorés. A decisão é “contestada” pelos dois estados, iniciando-se o clima de tensão 1939 – Fracassa a primeira negociação entre os estados para resolver a pendência.
1940 – Presidente Getúlio Vargas (1882-1954) designa o Serviço Geográfico do Exército para fazer levantamento na região do Contestado. A comissão formada por geógrafos e engenheiros militares elabora um mapa, no qual consta a mesma divisa das cartas anteriores.
1942 a 1948 – Novos choques entre as polícias mineira e capixaba. Soldado de nome Pimenta assassina um militar mineiro devido a insultos e provocações. Nos
morros perto de Mantena, soldados capixabas passam as noites em trincheiras à espera de invasão. 1948 – Governo capixaba ordena a ocupação do território em litígio por 600 homens “em perfeita organização bélica”
1948 – Acontece o massacre no quartel de Ataléia/MG. A invasão do quartel para libertação de um soldado preso e a morte de 04 militares. 1949 – A região fica ainda mais em sobressalto com a chegada de novos contingente dos dois estados. A tensão aumenta até 1956, quando o governador mineiro Bias Fortes (1891-1971) vai ao encontro do presidente Juscelino
Kubitschek (1902-1976), no Rio de Janeiro. 1957 – Fim da paz que estava perto de ser conquistada. Um deputado capixaba declara à imprensa que “repeliremos a bala qualquer tentativa de agressão”. Para não pagar impostos aos agentes de Vitória (ES), Minas abre variantes fora do alcance dos postos fiscais capixabas. 1958 – As negociações são reiniciadas, mediante formação de comissões em cada estado.
1963 – Depois de estudo pelas comissões dos dois estados, a história do Contestado chega ao fim, com a assinatura, em 15 de setembro, de acordo entre os governadores Magalhães Pinto (MG) e Lacerda de Aguiar (ES).
Bibliografia
http://www.sindpfsp.org.br/artigos_detalhe.asp?codigo=409 https://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2013/05/25/interna_gerais,394665/as- marcas-do-contestado-50-anos-apos-o-litigio-entre-mineiros-e-capixabas.shtml http://www.morrodomoreno.com.br/materias/contestado-zona-explosiva.html http://vitrinecapixaba.blogspot.com/2017/04/1957-contestado-espirito-santo-e- minas.html http://www.estacaocapixaba.com.br/2017/07/amostra-do-acervo-do-arquivo- historico_25.html
https://cidades.ibge.gov.br/brasil/mg/ataleia/historico Processo no 895 de 1948 – Tribunal de Justiça Militar de Minas Gerais
Artigo aprovado para publicação na Revista do Observatório da Justiça Militar Estadual, v. 2, n. 2, 2018