1. Introdução
Temos assistido, no Brasil dos últimos anos, a um rico debate acerca da restrição imposta por leis a direitos fundamentais. O assunto encontra amparo tanto na doutrina quanto na jurisprudência, sendo acirrada a discussão que permeia alguns dos desdobramentos da questão. Na seara do Direito Militar estadual, a polêmica tem sido levantada em face do conteúdo do art. 203, inciso IX, do Estatuto dos Militares do Estado de Minas Gerais, com a redação dada pelo art. 11 da Lei Complementar n. 109, de 22/12/2009, que assim dispõe:
Art. 203. Não concorrerá à promoção nem será promovido, embora incluído no quadro de acesso, o Oficial que:
[...]
IX - estiver preso à disposição da justiça ou sendo processado por crime doloso previsto:
a) em lei que comine pena máxima de reclusão superior a dois anos, desconsideradas as situações de aumento ou diminuição de pena;
b) nos Títulos I e II, nos Capítulos II e III do Título III e nos Títulos IV, V, VII e VIII do Livro I da Parte Especial do Código Penal Militar;
c) no Livro II da Parte Especial do Código Penal Militar;
d) no Capítulo I do Título I e nos Títulos II, VI e XI da
Parte Especial do Código Penal;
e) na Lei de Segurança Nacional.
§ 1º O Oficial incluído no quadro de acesso que for alcançado pelas restrições dos incisos III e IX e, posteriormente, for declarado sem culpa ou absolvido por sentença penal transitada em julgado será promovido, a seu requerimento, com direito a retroação.
§ 2º O Oficial enquadrado nas restrições previstas nos incisos III e IX concorrerá à promoção, podendo ser incluído no quadro de acesso, sendo promovido se for declarado sem culpa ou absolvido por sentença transitada em julgado, que produzirá efeitos retroativos.
A questão que pretendemos analisar diante de tal dispositivo diz respeito à compatibilidade do mesmo com preceitos constitucionais, mais especificamente com o princípio da presunção de inocência, constante do art. 5º, inciso LVII da Constituição da República. Assim, a pergunta que guia nossas reflexões neste trabalho diz respeito à compatibilidade ou não da norma estadual regulamentadora do Estatuto dos Militares do Estado de Minas Gerais com os parâmetros normativo-principiológicos insculpidos na Constituição da República do Brasil de 1988.
2. A legitimidade da restrição a direitos fundamentais
Não é despiciendo lembrar que nenhum direito, por mais importante que seja, pode ser considerado absoluto. Os direitos fundamentais comportam sim um âmbito de validade que não pode ser jamais absolutizado. Isso porque, conforme ensina a doutrina contemporânea, as sociedades complexas de nossos dias, que se organizam politicamente como Estados Democráticos de Direito têm no pluralismo um de seus eixos fundamentais. Ao ganhar roupagem jurídico-normativa, as diversas ideologias, valores e os múltiplos projetos de vida são incorporados à Constituição do Estado, passando a nela refletir um poliedro normativo que não se unifica em torno de uma unidade axiológica. Ao contrário, passa-se a conceber como possível, e mesmo desejável, a presença de normas cujo sentido e o teor podem revelar- se antinômicos quando de sua aplicação. São normas cujos funtores, apesar de não apresentarem contradição ou contraditoriedade, podem revelar-se antinômicos no momento da decisão de casos concretos. É o que a doutrina tem denominado conflito entre princípios, ou tensão entre normas constitucionais.
A legitimidade de tais restrições a direitos fundamentais é reconhecida até mesmo pela Declaração de Direitos Humanos das Nações Unidas, cujo art. 29 assim prescreve:
[...] toda pessoa tem deveres com a comunidade, posto que somente nela pode-se desenvolver livre e plenamente sua personalidade. No exercício de seus direitos e no desfrute de suas liberdades todas as pessoas estarão sujeitas às limitações estabelecidas pela lei com a única finalidade de assegurar o respeito dos direitos e liberdades dos demais, e de satisfazer as justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar de uma sociedade democrática.
Posicionamo-nos aí diante de um problema novo com o qual não se deparava a teoria clássica de Kelsen (1992) e Bobbio (1997), entre outros. É que, se para a antiga teoria do Direito, o fenômeno da antinomia apenas se apresentava diante da contradição dos funtores lógicos das normas jurídicas (é dizer, dos vocábulos de permissão, proibição ou prescrição), isso se dava em virtude de serem estas vistas por meio de uma interpretação que deveria se exaurir na dimensão semântica da linguagem. Destarte, a antinomia seria um problema passível de ser detectado por uma mera leitura dos textos normativos.
Em nossos dias, diferentemente, as Constituições democráticas passaram a inserir em seu texto normas que, conquanto abstratamente compatíveis, podem revelar-se em posição de tensão diante dos casos concretos. É o que ocorre, por exemplo, com a dignidade da pessoa humana e o direito à liberdade de expressão. Apesar de inexistente qualquer contradição lógica entre elas, quando abstratamente consideradas, revelam-se contudo potencialmente tensionadas nos inúmeros casos em que alguns, ao exercerem sua suposta liberdade de expressão artística ou intelectual, vêem suas ações colidirem com o interesse de outros que se sentem violados em sua dignidade.
3. As restrições a direitos fundamentais sob o prisma da proporcionalidade
O desenvolvimento do constitucionalismo contemporâneo caminhou para afirmar a existência de exceções possíveis a serem estabelecidas aos direitos ou princípios fundamentais, as quais não constituem negação de sua validade, mas resultado de legítimo exercício do poder legislativo, ou do adequado e correto processo de interpretação e concretização normativa que passa a ser, de resto, o norte de toda hermenêutica jurídica. Neste contexto, um método que passa ressurgir – com um novo perfil – e do qual muito se valerão os juristas, e sobretudo as Cortes Constitucionais da Europa é o da proporcionalidade. É que, como ensina Paulo Gustavo Gonet Branco (2009, p. 216):
Assentado que um direito assume a forma de princípio, há de ser tido como um mandamento de otimização, o que o torna maleável às possibilidades não somente fáticas como também jurídicas. Daí resulta que poderá ter a sua abrangência normativa comprimida ou distendida conforme o peso de princípios constitucionais que se lhe contraponham parcial ou totalmente.
É imperioso observar que, se os direitos fundamentais têm sua origem história vinculada à proteção dos indivíduos em face do Estado, a convivência social em uma sociedade politicamente organizada não dispensa a estipulação e vinculação dos indivíduos a deveres e obrigações que limitam o espectro de suas liberdades afirmadas. Isto se faz primacialmente diante da imperiosa necessidade de resguardar outros valores também importantes, em situações cujos contornos fáticos assim o recomendem.
Assim é que, seguindo aquela tendência descortinada no Direito alemão, tem-se desenvolvido recentemente na jurisprudência brasileira a chamada ponderação de valores (ou de interesses). Suas bases metodológicas encontram-se fundamentalmente na escola da Jurisprudência dos Valores e, também, mais contemporaneamente, no publicista e jusfilósofo alemão Robert Alexy (2008, 2010). Na doutrina nacional, tem sido acolhida e sustentada por autores como Luis Roberto Barroso (2006, 2009), Daniel Sarmento (2003), Gilmar Mendes (2007), Virgílio Afonso da Silva (2005) e Paulo Gustavo Gonet Branco (2009), entre muitos outros. As premissas da escola fazem-se presentes em diversos julgados, notadamente do Supremo Tribunal e dos Tribunais Superiores, como os a seguir colacionados:
EMENTA: PROCESSO PENAL. PRISÃO CAUTELAR. EXCESSO DE PRAZO. CRITÉRIO DA RAZOABILIDADE. INÉPCIA DA DENÚNCIA. AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA. INOCORRÊNCIA. INDIVIDUALIZAÇÃO DE CONDUTA. VALORAÇÃO DE PROVA. IMPOSSIBILIDADE EM HABEAS CORPUS. 1. (...) 6. Na contemporaneidade, não se reconhece a presença de direitos absolutos, mesmo de estatura de direitos fundamentais previstos no art. 5º, da Constituição Federal, e em textos de Tratados e Convenções Internacionais em matéria de direitos humanos. Os critérios e métodos da razoabilidade e da proporcionalidade se afiguram fundamentais neste contexto, de modo a não permitir que haja prevalência de determinado direito ou interesse sobre outro de igual ou maior estatura jurídico-valorativa. 7. Ordem denegada. (BRASIL. Supremo Tribunal Federal, HC 93.250, 2008)
Em julgado que despertou acesa controvérsia no Plenário do Supremo Tribunal Federal, no que diz respeito à investigação de paternidade e a realização de exame de DNA, assim se pronunciou, em voto lapidar o Min. Francisco Rezek:
EMENTA - INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE- EXAME DE DNA – CONDUÇÃO DO RÉU “DEBAIXO DE VARA”. DISCREPA A MAIS NÃO PODER, DE GARANTIAS CONSTITUCIONAIS IMPLÍCITAS E EXPLÍCITAS. Vale destacar que o direito ao próprio corpo não é absoluto ou ilimitado. Por vezes a incolumidade corporal deve ceder espaço a um interesse preponderante, como no caso da vacinação, em nome da saúde pública. Na disciplina civil da família o corpo é, por vezes, objeto de direitos. Estou em que o princípio da intangibilidade do corpo humano, que protege um interesse privado, deve dar lugar ao direito à identidade, que salvaguarda, em última análise, um interesse também público.
Lembra o impetrante que não existe lei que o obrigue a realizar o exame. Haveria, assim, afronta ao artigo 5º, II da CF. Chega a afirmar que sua recusa pode ser interpretada, conforme dispõe o artigo 343, § 2º do CPC, como uma confissão. Mas não me parece, ante a ordem jurídica da república neste final de século, que isso frustre a legítima vontade do juízo de apurar a vontade real. A lei 8.069/90 veda qualquer restrição ao reconhecimento do estado de filiação, e é certo que a recusa significará uma restrição a tal reconhecimento. O sacrifício imposto à integridade física do paciente é risível quando confrontado com o interesse do investigante, bem assim a certeza que a prova pericial pode proporcionar ao magistrado. (destacamos). (BRASIL. Supremo Tribunal Federal, HC 71. 373, 1996, p. 45.686)
4. A tensão entre os princípios jurídicos e o juízo de adequabilidade
Dizer que os direitos e garantias fundamentais não são absolutos significa que eles podem sofrer limitações, sejam abstratas, quando a própria lei os restringe, sejam concretas, quando impostas pelo Poder Judiciário. Aquelas, produzidas pelo legislador, configuram o resultado da ponderação de diversos valores, interesses e bens juridicamente tutelados, estabelecendo limites normativos que constituem parâmetro de exercício de todo e qualquer direito. Já as limitações em concreto, dão-se quando, diante do conflito juridicamente instaurado, determina o Poder Judiciário, após rigorosa apreciação de todas as circunstâncias envolvidas, qual deve ser o direito aplicável à situação concreta.
Neste sentido, preferimos nos filiar a posição dos que entendem que, em se tratando da dimensão jurisdicional, melhor seria falar-se em um discurso de adequação [1] a um juízo de ponderação. É que só à instância legislativa, respaldada por amplo procedimento representativo eleitoral, estaria legitimada a efetivar uma ponderação de valores. Ao juiz cabe lidar com valores já convertidos pelo código do Direito, vale dizer, tornados deontologicamente observáveis. Mas a dimensão do devido, inerente aos direitos, também não lhes eliminaria as tensões internas decorrentes da própria vivência democrática.
Assim sendo, nesta quadra da história, devemos sempre encarar os direitos e princípios constitucionais sob o espectro da tensão que entre eles se estabelece. No que tange ao princípio da presunção de inocência, constatamos que este se insere em meio aos direitos e garantias de natureza penal e processual penal, tendo, portanto, no conceito de culpa elemento nuclear de seu âmbito de proteção. Este, aliás, é o sentido primeiro advindo de uma interpretação topológica e gramatical do texto normativo constitucional invocado como parâmetro de constitucionalidade para o caso. Este dispõe que: “Art. 5º, inciso LVII – Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.
Todavia, mesmo no que diz respeito a tal núcleo de proteção (penal e processual penal) vemos que há notórias e assumidas restrições à absolutização dos efeitos da norma, considerando-se válidas as prisões preventivas, em flagrante, por pronúncia e por sentenças condenatórias sem trânsito em julgado. Mesmo no que concerne às prisões cautelares, têm o Supremo reconhecido a legitimidade de sua adoção em situações que não se revelem como antecipação do cumprimento de pena (BRASIL. Supremo Tribunal Federal, Rcl. 2.391, 2008).
A missão do Judiciário revela-se, assim, em reconstruir e concretizar, da maneira mais adequada e efetiva o sistema aberto pelo qual o Direito historicamente se manifesta. Uma norma não é nunca idêntica ao seu texto, sendo já resultado da interpretação deste. E esta, como nos ensina a moderna hermenêutica, é intrinsecamente sistemática, só podendo ser auferida mediante o conjunto dos diversos preceitos normativos e principiológicos que compõem o sistema.
Seguindo a metódica de Friedrich Müller (2005, 2007), temos que a interpretação no Direito não pode nunca desconsiderar o conjunto das teorias e técnicas interpretativas, bem como todos os princípios que concorrem frente às características fáticas trazidas ao processo de aplicação. Assim, a decisão adequada envolve muito mais que uma aparente subsunção de norma a fato concreto, sendo diferente também de uma ponderação de valores. Considerando a concorrência de todas as normas, princípios, doutrinas e técnicas interpretativas do sistema jurídico, chegaremos à resposta correta, vale dizer, à aplicação mais adequada e justa. Com Dworkin (2001, passim, 2010, p. 76 ss), podemos dizer que chegaremos à posição de que um ou outro princípio oferece a melhor justificação de algum aspecto da realidade jurídica. Isto significa, segundo o festejado autor norte-americano, que obteremos o melhor no sentido interpretativo, isto é, melhor porque melhor se ajusta ao conjunto de elementos conformadores da história viva das normas e da interpretação do Direito.
5. A constitucionalidade do art. 203, IX da Lei 5301/69 (Estatuto dos Militares do Estado de Minas Gerais)
Tendo em vista as considerações acima desenvolvidas, devemos então nos perguntar qual a melhor resposta, aquela que confere maior dinâmica, concretude e coerência com todas as demais normas e princípios envolvidos no âmbito de aplicação normativa do art. 203, IX da Lei n. 5.301/69? Primeiramente, verificamos que a presunção de inocência não é o único princípio aplicável a esta situação concreta. Ele coloca-se em tensão com princípios orientadores da Administração Pública, insculpidos no art. 37 da Constituição Federal, dentre os quais destacamos os princípios da moralidade e da eficiência.
Deve-se ter sempre em mente que, num Estado Democrático de Direito, a moralidade atinge o patamar de condição legitimadora do exercício de funções públicas. É que não mais nos contentamos com a simples legitimação originária. Por mais que tenha alguém concorrido com méritos ou com vasto apoio majoritário para obter o título ao exercício de função pública, esta somente se fará legitimada pela comprovação diuturna das condições técnicas (eficiência) e éticas (moralidade) que lhe são constitucionalmente exigidas. Constata-se assim uma série de disposições normativas que tem por fim este propósito. Senão vejamos.
No que tange, por exemplo, à magistratura, a Lei Orgânica da Magistratura Nacional (LOMAN) – Lei Complementar n. 35, de 14 de março de 1979 consagra norma que autoriza explicitamente o afastamento de magistrado do exercício de suas funções sem que haja a formação da culpa. Leia-se:
Art. 27 - O procedimento para a decretação da perda do cargo terá início por determinação do Tribunal, ou do seu órgão especial, a que pertença ou esteja subordinado o magistrado, de ofício ou mediante representação fundamentada do Poder Executivo ou Legislativo, do Ministério Público ou do Conselho Federal ou Secional da Ordem dos Advogados do Brasil. [...]
§ 3º - O Tribunal ou o seu órgão especial, na sessão em que ordenar a instauração do processo, como no curso dele, poderá afastar o magistrado do exercício das suas funções, sem prejuízo dos vencimentos e das vantagens, até a decisão final.
Seguindo este mesmo entendimento, a Lei Complementar n. 65, de 16 de janeiro de 2003, que organiza a Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais, dispõe que:
Art. 63 – Poderá concorrer à promoção por merecimento o membro da Defensoria Pública que: [...]
III – não tenha sofrido penalidade disciplinar nos doze meses anteriores à formação da lista nem esteja submetido a processo disciplinar ou administrativo;
IV – não esteja respondendo a ação penal por infração cuja sanção cominada seja de reclusão nem esteja cumprindo pena;
Cumpre salientar, também, que a Constituição do Brasil veda a promoção dos Magistrados e dos integrantes do Ministério Público até mesmo sem instalação de processo ou procedimento. É o que está consagrado nos seguintes dispositivos:
Art. 93. Lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o
Estatuto da Magistratura, observados os seguintes princípios: [...]
II – promoção de entrância para entrância, alternadamente, por antiguidade e merecimento, atendidas as seguintes normas:
e) não será promovido o juiz que, injustificadamente, retiver autos em seu poder além do prazo legal, não podendo devolvê-los ao cartório sem o devido despacho ou decisão. [...]
Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público: [...]
§ 4º. Aplica-se ao Ministério Público, no que couber, o disposto no art. 93.
Por fim, não podemos desconsiderar a força e o impacto da norma insculpida no § 9º do art. 14 da Constituição da República que, tendo por fim proteger a moralidade no exercício de mandato legislativo veio tornar possível a criação de outros casos de inelegibilidade que não aqueles regulados no texto constitucional. Veja-se sua disposição:
Art. 14 [...]
§ 9º Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para o exercício de mandato, considerada a vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta.
Esta norma tem muito a nos ensinar sobre as pretensões do constituinte no que diz respeito a moralidade no exercício de função pública. Sem entrarmos em qualquer apreciação sobre a tão falada “Lei da Ficha Limpa”, constatamos que, até mesmo para o caso de cargos públicos que já gozam, intrinsecamente do controle direto por parte do titular de todo o poder – o povo -, mesmo aí fez a Constituição questão de abrir a possibilidade de controle formal de seu comportamento ético. Perguntamos: se em relação a magistrados, promotores, defensores e mesmo de agentes políticos sobejam normas que controlam, não apenas a promoção, mas impõe restrições ao próprio exercício da atividade funcional, seriam logo os militares, a quem a Constituição outorgou responsabilidades e códigos éticos tão particulares e severos, que deveriam ficar à deriva de um controle mais efetivo da moralidade no exercício funcional?
Data venia, penso que não. Ao contrário, devemos sempre nos lembrar das especificidades do serviço público prestado pela polícia militar, considerada força auxiliar do exército, nos termos do § 5º do art. 144 da Constituição Federal, cuja estrutura se assenta nos vetores da hierarquia e da disciplina. Se tais pilares foram previstos em lei, não o foram por simples capricho legislativo, mas, fundamentalmente, porque imprescindíveis para o cumprimento das relevantes e desafiadoras funções inerentes às demais, que a Constituição lhes incumbiu. A restrição à promoção aos militares que estejam enquadrados nas situações previstas no art. 203, inciso IX, da Lei n. 5.301/69, a meu sentir, tem como escopo a manutenção da disciplina junto à tropa, no sentido de a Administração cercar-se de maiores cautelas em relação àqueles que estejam respondendo a processo disciplinar e, de outro lado, possibilita estabelecer maiores incentivos para a retidão da conduta do militar.
Ademais, não se há de desconsiderar que a condenação de militar, em qualquer dos crimes previstos no artigo retro mencionado, ofenderia tão mais a honra e o pundonor da classe quanto maior fosse a sua graduação, até mesmo pela ligação entre respeito, hierarquia e disciplina. Estes são vetores básicos e estruturais para as forças militares, encontrando guarida e reconhecimento constitucional.
Ressalto que estas considerações estão assentadas na premissa fundamental de que a legislação estadual assegura ao militar o direito de promoção, com efeitos retroativos, na eventual hipótese de absolvição – inteligência do § 1º do art. 203 da Lei n. 5.301/69. Essa condição foi considerada fator primordial em precedente do Tribunal de Justiça Militar de Minas Gerais, o qual concluiu que o militar denunciado em processo penal militar por crime doloso, beneficiado por sursis processual, previsto no art. 89 da Lei n. 9.099/95, não faz jus à promoção enquanto não for decretada a extinção da punibilidade. O direito do militar à promoção ficaria suspenso e, se e quando cumpridas as condições estabelecidas no período de prova, poderia ele ser promovido (MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça Militar, Ap Cv 405,
2009).
Ademais, é ela condição fundamental a garantir a proporcionalidade e razoabilidade do dispositivo da Lei n. 5.301/69. A sua existência transmite-nos certeza da razoabilidade normativa que norteou o legislador ao medir os seus critérios. É que a reintegração do status quo ante torna-se factível e viável mediante os procedimentos por ela mesma previstos. A importância de tal dispositivo ressalta ainda mais quando, tomando o argumento a contrario, deixamo-nos conduzir pela sólida fundamentação do Min. Cezar Peluso, no julgamento de Reclamação envolvendo a discussão sobre os limites e legitimidade da prisão cautelar. Assim se posicionou o hoje presidente do Supremo Tribunal Federal:
Além de infringir princípios básicos de justiça – porque uma eventual reforma da decisão, em que o réu tenha sido preso, não encontra nenhuma medida no campo jurídico capaz de restaurar o estado anterior, pois se trata de privação de liberdade, nem sequer a indenização de ordem pecuniária, prevista na Constituição, por erro absolutamente incompatível – e aqui invoco o princípio da proporcionalidade. (BRASIL. Supremo Tribunal Federal, Rcl. 2.391, 2008).
Vemos assim a importância atribuída à capacidade ou não da norma de retroceder à situação ou ao estado original, que os antigos romanos conheciam como status quo ante. Trata-se a nosso ver de medida que não apenas resguarda a integridade do princípio da presunção de inocência, como também evita as temerárias situações em que seríamos lançados com a adoção do entendimento oposto. Vale dizer, se de um lado temos como assegurar que o militar inocentado retomará integralmente a situação inicial a que teria direito, o mesmo não ocorreria caso permitíssemos incondicionadamente a sua promoção, a qual poderia gerar também a sua inclusão na reserva, com remuneração a partir daí tornada inatingível.
Este o entendimento também consagrado pelo Supremo Tribunal Federal, em decisão de sua 2ª Turma, em que a restrição ao direito à promoção do militar não foi considerada ofensiva ao princípio da presunção de inocência, uma vez que resguardada a promoção retroativa em caso de absolvição. Confira-se:
EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. PROMOÇÃO DE OFICIAL DA POLÍCIA MILITAR. EXCLUSÃO. ABSOLVIÇÃO. RESSARCIMENTO. PRECEDENTE.
A jurisprudência do Supremo é no sentido da inexistência de violação do princípio da presunção de inocência [CB/88, artigo 5º, LVII] no fato de a lei não permitir a inclusão de oficial militar no quadro de acesso à promoção em razão de denúncia em processo criminal. 2.
É necessária a previsão legal do ressarcimento em caso de absolvição. Precedentes. Agravo regimental a que se nega provimento. (BRASIL. Supremo Tribunal Federal, RE 459.320, 2008)
6. Conclusões
Em célebre trabalho publicado ao fim do século XX, o notável pensador e jurista Norberto Bobbio pontuou estarmos vivendo na “Era dos direitos”. A consagrada alcunha bem traduz, de fato, um dos elementos fundamentais de nossas sociedades contemporâneas. Não apenas a expansão do espectro de proteção dos direitos, mas a percepção de novas dimensões de sua extensão conceitual. Evidentemente, se o espectro de proteção dos direitos se amplia, amplia-se consequentemente a possibilidade de antinomias no sistema jurídico, o qual, sendo agora compreendido como um sistema aberto, não recobra uma unidade axiológica como fundamento. Teremos então um novo perfil para as antinomias jurídicas, as quais não mais deverão ser vistas como simples contradição lógica entre seus modalizadores deontológicos. É dizer, as tensões são decorrentes do próprio processo de interpretação e aplicação inerente à “vida dos direitos”.
Dos juristas passa-se, pois, a exigir mais. Exige-se, sobretudo, a contínua busca pela interpretação que encontre, no amplo e complexo poliedro normativo do Direito, a norma que consagre a melhor resposta aos conflitos de interesse concretos, com atenção não apenas às inúmeras normas que potencialmente se tencionam, mas também a todas as particularidades do caso concreto. A busca pela correção normativa torna-se assim, a fórmula contemporânea da própria “luta pelo Direito”.
A questão motivadora do presente estudo revela-se um exemplo performático da complexidade da tarefa hermenêutica nesta quadra da história. Nela vemos a potencial tensão de normas constitucionais em face de uma situação particular. Estaria a norma que impede a progressão na carreira de militar processado por algumas modalidades de crime doloso em conflito com a Constituição? Os que assim, sustentam, procuram ver o princípio da presunção de inocência como único parâmetro de constitucionalidade. Como visto, ousamos divergir deste entendimento, posto que ele não confecciona a melhor adequação dos preceitos constitucionais. É que há outras normas e princípios constitucionais igualmente aplicáveis a esta situação, não sendo possível fecharem-se os olhos, como demonstrado, aos princípios constitucionais da moralidade e da eficiência, que atingem o patamar de condição legitimadora do exercício de funções públicas. Tampouco se deve desconsiderar a ampla regulamentação existente em relação a magistrados, promotores, defensores e mesmo agentes políticos, onde sobejam normas que controlam, não apenas a promoção, mas impõe restrições ao próprio exercício da atividade funcional. Por fim, torna-se elemento fundamental, que jamais deve ser olvidado, a premissa de que a legislação estadual assegura ao militar o direito de promoção, com efeitos retroativos, na eventual hipótese de absolvição – inteligência do § 1º do art. 203 da Lei n. 5.301/69.
Por todas essas razões, entendemos que o art. 203, inciso IX da Lei n. 5.301/69 (Estatuto dos Militares de Minas Gerais) é plenamente compatível com a normatividade estatuída pela Carta Magna de 1988, sendo, pois, constitucional.
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Nota
1 - Para uma melhor compreensão do discurso de adequação deve-se atentar para as obras de KlausGünther. Teoria da argumentação no direito e na moral: justificação e aplicação. São Paulo: Landy,2004, e J. Habermas. Facticidad y validez: sobre el derecho y el Estado Democrático de Derecho em términos de teoria del discurso. Madrid: Trotta, 1998. Entre nós, fundamentais são as reflexões desenvolvidas, entre outros, por Álvaro R. Souza Cruz. Habermas e o direito brasileiro. São Paulo: Lumen Juris, 2006, e Hermenêutica jurídica (e)em debate. Belo Horizonte: Fórum, 2009; Marcelo Cattoni de Oliveira. Jurisdição e hermenêutica constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2004, Luiz Moreira. Fundamentação do direito em Habermas. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003; e Marcelo C. Galuppo. Igualdade e diferença. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002.
Fernando Armando Ribeiro é Pós-‐doutor em Direito pela Universidade da Califórnia em Berkeley (EUA); Doutor em Direito pela UFMG; Professor da PUC-‐Minas; Juiz do Tribunal de Justiça Militar de Minas Gerais