1. Questão biológica sobre o olfato dos cachorros
O olfato dos cães é tão poderoso que é muito difícil imaginarmos todos os odores que são capazes de detectar e isso os torna animais extremamente especiais, como nossos fortes aliados, nas operações policiais nas buscas de pessoas desaparecidas, detecção de doenças, explosivos etc. Breves relatos históricos demonstram que os seres humanos se aproveitavam desse incrível sentido dos cães, pois esses animais eram amplamente utilizados nas caças e até mesmo para pastorear. Os cães sempre foram treinados até mesmo para detecção de odores incomuns, como, por exemplo, para localização dos sedimentos de baleias. Os piratas utilizavam os cães para localização de tesouros que podiam estar escondidos a vários quilômetros. Os cães são descendentes dos lobos e existem diversas teorias discutidas na medicina veterinária de como esses animais foram capazes de serem domesticados e considerados na atualidade os “melhores amigos do homem”. Infelizmente, o início histórico foi ruim, pois há teorias que apontam que os lobos se aproximavam dos seres humanos para aproveitar dos restos de comidas e com isso passaram a dividir o espaço com os humanos e em contrapartida, os humanos sentiam-se seguros por terem por perto animais que os protegessem de ataques de animais selvagens. Com o passar dos anos, os filhotes de lobos de futuras gerações não caçavam mais sozinhos e tinham o homem como sendo a única fonte de alimento e com isso iniciou-se a amizade mais sincera infinita que poderia existir entre o homem e os cães. Os cães filhotes começaram a ver o homem como líder deles e com o decorrer do tempo a agricultura passou a ser a fonte de exploração do homem, com isso os cães foram se adaptando a esse novo cenário, passando de caçadores a pastores, e devido a isso houve uma grande seleção genética cruzando animais que tinham menos propensão de comer os rebanhos e fazendo com que cada vez mais os animais tivessem genes que acarretassem a fenótipos de cães pastoreios. Com o tempo os cães estavam cada vez mais próximos dos seres humanos tornando-se adoráveis animais de estimação. O DNA dos cães ainda carrega grande semelhança genética dos lobos, sendo que apresentam capacidade olfativa extremamente desenvolvida.
Uma das explicações científicas mais plausíveis a essa facilidade de captação de odores deve-se ao fato de possuírem um focinho esponjoso e molhado e também à capacidade de cheirar, separadamente, com cada narina, sendo que quando o ar adentra no nariz, um tecido o separa em dois compartimentos e com isso ele sentirá o cheiro através de uma narina e com a outra ele irá respirar. Os cães apresentam aproximadamente duzentos milhões de receptores olfativos e cada receptor detecta e é capaz de identificar as moléculas que estão no ar e em objetos. De todos os sentidos de um cão o olfato é o mais desenvolvido e são capazes de sentir odores em concentrações milhões de vezes menor do que os seres humanos. Quando os cães querem cheirar algo o ar passa por todos os receptores do olfato, trazendo um verdadeiro maquinário de identificação dos sinais olfativos. O cachorro apresenta ainda um sistema olfativo separado, anatomicamente localizado acima do céu da boca, chamado órgão vomeronasal. Os filhotes de cães apresentam sensores de calor no nariz e isso permite que eles encontrem suas mães quando estão com os olhos e ouvidos fechados. Casos policiais apresentam como verdadeiros vilões, os cães farejadores, pois são personagens de extrema valia em diversas situações que se referem ao resgate de vítimas, sendo ferramentas essenciais nesse tipo de situação, sendo que são treinados de maneira específica com um desenvolvimento praticamente constante desenvolvendo ainda mais a suas habilidades olfativas e isso faz com que se tornem grandes aliados e indispensáveis para a solução dos casos variados. Além de sua grande capacidade olfativa e sensibilidade, os cães, apresentam características como a valentia e a lealdade que são fatores importantes que os fazem ter a definição de um bom cão farejador, além disso vale salientar que existem raças que ganham verdadeiro destaque nesses quesitos, sendo animais ideais para o desenvolvimento dessas tarefas. Os cães das raças: Pastor Alemão, Pastor Belga e Pastor Holandês são raças bem populares dentre os cães selecionados para o desenvolvimento dessas atividades policiais, tanto pela polícia quanto pelos bombeiros. Dentre as raças mais eficientes podemos citar ainda Fox-Terrier, Rotweiller, Golden Retriever e Labrador. Dentre os sexos dos cães destacamos que as fêmeas são mais disciplinadas, pois cães machos podem distrair-se facilmente atrás de cadelas no cio, além de demarcar o território com frequência. As células olfativas são variadas de acordo com a raça do animal, sendo que em cães com focinhos menores a sensibilidade é considerada menor. Essas raças supramencionadas são valentes, leais, obedientes e tem muita energia, sendo treinados desde filhotes, são cães que amam trabalhar para agradar os seus donos e com isso desenvolvem o sentido olfativo desde pequenos, podendo buscar itens bem variados. O treinamento dos cães farejadores evolui com a idade e os brinquedos são feitos propondo ações e recompensas. Os treinamentos com entorpecentes, normalmente, iniciam com maconha, cocaína e por último com o crack. Normalmente, diversas ações de treinamento são misturadas, mas basicamente utilizam um brinquedo ou outra coisa que o cão identifique como recompensa ao odor de substâncias ilícitas, e a partir daí o treinamento começa a ganhar forma. Além disso, outras atitudes são ensinadas aos cães, para que possam ter um comportamento latindo ou ficando em estado de alerta ou pulando e até mesmo arranhando. Em casos de pessoas desaparecidas, em operações de resgate, apresentam aos cãezinhos o cheiro da pessoa específica e faz com que o animal procure aquele mesmo cheiro.
Só para se ter uma ideia, segundo fonte da revista Veja[1], o olfato do cão é 50 vezes superior ao olfato do ser humano, o que lhe permite, sem dificuldade farejar entorpecente, por exemplo, a uma distância de 1,6 quilômetros de uma residência. Aliás não são poucos os exemplos do cotidiano que atestam essa capacidade dos cães. Somente a título de exemplo, em um caso prático mencionado em um brilhante artigo escrito por Leandro Edison da Rosa[2] menciona o caso de um beagle de nome “Bono” que conseguiu identificar grande quantidade de entorpecentes em uma residência, mesmo estando a droga enterrada no quintal da casa.
A seguir analisaremos a questão jurídica sobre o tema e o ingresso por policiais militares com cães farejadores e tentaremos estabelecer um parâmetro que autorize esses profissionais da segurança pública a ingressarem na residência sem incidirem no tipo penal de abuso de autoridade.
2. Questão jurídica sobre o ingresso em domicílio
Conforme redação do artigo 5º, inciso XI, da Constituição Cidadã de 1988, a casa é asilo inviolável do indivíduo, nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial. Percebe-se que a Constituição estabelece os parâmetros para poder adentrar no domicilio de alguém, protegendo o mesmo do arbítrio estatal. Esse direito atinge a intimidade do indivíduo, e apesar de ser um tema interessantíssimo para análise, o enfoque do presente artigo é o aspecto processual penal e não a análise Constitucional da inviolabilidade do domicílio.
Antes de adentrar a análise da busca e apreensão é fundamental definir a natureza jurídica desse instituto. Segundo Renato Brasileiro de Lima[3], a fonte de prova é pessoa ou coisa em que se extrai a informação para demonstrar uma narrativa fática. Já o meio de prova é o método empregado para se extrair a informação como a oitiva de testemunha, o depoimento do acusado e a perícia. Por fim, o meio de obtenção de prova são providencias tomadas para encontrar fontes de prova, como a busca e apreensão, interceptação telefônica, agente infiltrado, ação controlada e etc. Logo como visto acima a busca e apreensão constitui-se em meio de obtenção de prova.
A busca e apreensão, apesar de lidas frequentemente juntas, são institutos distintos. A busca significa vasculhar ou procurar algo para que funcione como fonte de prova (como no caso de busca domiciliar para encontrar elementos de informação ou mesmo busca pessoal quando houver fundadas suspeitas). Já a apreensão significa constrição de objeto ou coisa para que possa ser utilizado durante a instrução criminal como fonte de prova ou mesmo para a garantia de restituição da coisa quando duvidosa sua propriedade, como no caso do produto do crime. Assim, pode ocorrer a busca sem que haja apreensão. A apreensão possui natureza cautelar, visando atingir o resultado útil do processo, para que a fonte de prova não se perca ou pereça com o tempo. Nesse sentido também Fernando da Costa Tourinho Filho[4].
Por se tratar de um direito fundamental a intimidade, quando determinada por ordem judicial, o mandado de busca e apreensão precisa ser certo e determinado, em atendimento a Constituição e ao disposto no artigo 243 do Código de Processo Penal[5]. Assim escreve a Professora Cleonice Pitombo[6] que não é admissível mandado de busca e apreensão vago e genérico devendo o mesmo delimitar a finalidade do mandado e restringir o alcance da medida. Parece evidente que uma violação dessa magnitude à um direito fundamental deve ser motivado e restrito as finalidades a ele almejadas.
Ainda sim surge outro problema que é a delimitação do conceito de “casa”. O Código Penal no artigo 150 traz esse conceito definindo como casa qualquer compartimento habitado, aposento ocupado de habitação coletiva e compartimento não aberto ao público, onde alguém exerce profissão ou atividade. Evidentemente, para fins de busca domiciliar, tal conceito deverá ser alargado, acobertando-se, com a tutela da inviolabilidade do domicílio, inclusive quartos de hotéis, enquanto ali estiver ocupado, trailers, bem como estabelecimentos comerciais.
O artigo 240, § 1º do Código de Processo Penal diz que proceder-se-á à busca domiciliar quando fundadas razões a autorizarem. Mas o que seriam fundadas razões? Segundo doutrina, nesse sentido mencionamos Renato Brasileiro de Lima[7], são elementos suficientes que levam a autoridade policial a ingressar na residência. Como estamos diante de um conceito extremamente abstrato, o festejado autor remete ao conceito americano de probable cause ou causa provável que são, na palavra do mencionado autor: “...quando os fatos e as circunstâncias permitam a uma pessoa razoável acreditar ou ao menos suspeitar, com elementos concretos, que um crime está sendo cometido no interior de uma residência”.
Apesar deste conceito é inegável que a jurisprudência flutua no sentido de adotar ou não o conceito de fundada suspeita. Como exemplo temos decisões da 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal no sentido de que é válida a prisão em flagrante realizada por autoridade policial baseada em denúncia anônima (HC 90.178/RJ, relator Ministro Cesar Peluso, julgado em 02/02/2010), e há decisão da 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça afirmando que a fuga do acusado somada a denúncia anônima, por si sós, não configuram fundadas razões a autorizar o ingresso policial no domicílio do acusado sem seu consentimento ou determinação judicial.
Então, como resolver essa questão, já que a inviolabilidade do domicílio é a regra e a invasão do domicílio sem determinação judicial é excepcionalíssima. Parece evidente que essa questão não pode ter essa baixa densidade normativa, o que permitiria abusos e insegurança jurídica. Para essa solução encontramos o brilhante texto dos Professores Ingo Wolfgang Sarlet e Jayme Weingartner Neto[8] que incluem mais um elemento para autorizar a busca e apreensão em flagrante delito sem a autorização judicial: o perigo da demora.
Assim caberá ao aplicador do direito fazer uma ponderação do bem jurídico violado pela conduta delitiva e a inviolabilidade do domicílio. Para complementar o estudo transcrevemos os ensinamentos de Cristiano Chaves de Farias, Nelson Rosenvald e Felipe Braga Neto[9]: “É uma técnica que traz, entre outros, três postulados básicos: a) só tem sentido diante de casos concretos, nunca de modo abstrato e apriorístico; b) a solução dada em determinado caso concreto (prevalência, digamos, em determinado caso, da privacidade e da intimidade em relação à liberdade de expressão) não será necessariamente a mesma em outro caso com contextos distintos; c) o intérprete, para chegar a uma solução, poderá fazer concessão recíprocas, procurando ponderar os interesses envolvidos. Por isso é que há autores alemães que dizem que o Estado Constitucional de Direito é um Estado de Ponderação (Abwagungsstaat) ”.
Para chegarmos a essa conclusão devemos analisar a natureza da busca e apreensão sem autorização judicial. Essa espécie de busca e apreensão possui natureza evidentemente probatória, eis que visa encontrar elementos informativos, o que é inerente da busca e apreensão que é como visto anteriormente um meio de obtenção de provas. Porém, essa modalidade de busca e apreensão possui uma natureza pré-cautelar[10], que é fazer cessar a prática delitiva impedindo a sua consumação ou até mesmo o seu exaurimento, principalmente nos crimes permanentes. Essa conclusão chegamos, pois como o elemento que autoriza o seu ingresso é a prisão em flagrante, por um imperativo lógico essa espécie de busca e apreensão possui a mesma função.
Não há como raciocinar sobre institutos ligados ao processo penal sem se vincular às garantias e direitos fundamentais, uma vez que estes são pré-existentes a todos os poderes que os restringem. A construção do raciocínio jurídico, portanto, é resultante do processo revolucionário.
Os poderes que restringem esses direitos são posteriores, criados com uma perspectiva de limitar o exercício desses direitos na medida do necessário. É a base para o raciocínio de todos os problemas. Os direitos são a regra e a base do ordenamento jurídico. Já a restrição, com poderes e deveres, é a exceção. A ordem judicial não é simplesmente um poder, mas uma decisão, na qual o juiz avalia a pertinência e o cabimento para determinar aquela ordem. Trata-se de uma decisão de caráter jurisdicional, tarefa atribuída ao Poder Judiciário, o que representa uma cláusula de reserva de jurisdição, sendo o ingresso no domicílio sem decisão judicial é exceção, devendo a medida ser urgente e demonstrado o perigo da demora pode lesionar outros direitos fundamentais.
3. O cão farejador utilizado pela polícia e o encontro de entorpecentes na residência
O emprego do cão farejador é altamente eficiente no encontro de entorpecentes, seja quando utilizado pela Polícia Federal ou Receita Federal em aeroportos e portos, seja quando utilizado pela Polícia Militar em suas incursões em favelas, como ocorrem diariamente, ou para encontro de celulares em presídios, ou para o encontro de pessoas na mata ou quando de desastres terrestres etc.
No caso de crime permanente, como é o caso de guarda ou depósito de entorpecente na residência, a questão que se coloca é se, com o emprego de cão farejador, pode a Polícia ingressar na residência, sem mandado judicial para coibir a prática do crime?
Em decisão interessante, o STJ, no HC 423.838/SP – Min. Rel. Sebastião Reis Júnior – J. 08.03.18, reconheceu a legalidade de ingresso na residência quando existir forte odor de entorpecente, autorizando para tanto a busca policial sem mandado judicial, decisão esta que cita vários precedentes daquela Corte.[11]
A nosso ver, a utilização do cão farejador, com o seu aguçado e seguro faro, pode permitir à Polícia o encontro de entorpecente em residências, e neste caso, tratando-se de crime permanente, autorizar o ingresso ali sem mandado judicial.
Sobre a jurisprudência do tema, ora discutido, encontramos alguns julgados que vale trazer a colação.[12]
O primeiro julgado refere-se ao Resp 1.574.681-RS, Relator Ministro Rogério Schietti Cruz, julgado em 20/04/2017, julgado pela 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça. Nesse julgado, entendeu a Corte que para que haja o ingresso do policial militar no caso de flagrante delito no crime de tráfico deve haver fundadas razões ou justa causa e a mera intuição de que no local está havendo a prática de tráfico não autoriza o ingresso no domicílio sem mandado judicial.
Na mesma linha a 6ª Turma decidiu no Recurso em Habeas Corpus número 83.501/SP, relator Ministro Nefi Cordeiro, julgado em 06/03/2018, que não caracteriza justa causa para ingresso na residência sem mandado judicial o fato de haver denúncia anônima e durante a abordagem policial o indivíduo empreender fuga.
Percebemos que a jurisprudência da Corte é volátil sobre o tema, ora entendendo que o simples cheiro de drogas autoriza o ingresso sem mandado judicial na residência e outrora entendendo que se o indivíduo empreender fuga e havendo denúncia anônima sobre comercialização de entorpecentes não caracteriza a justa causa para o ingresso do policial. Isso gera uma indesejável insegurança jurídica, principalmente aos policiais militares que trabalham com cachorros farejadores e tem em mãos uma potente arma de combate ao tráfico de drogas e outros crimes graves.
Buscando uma solução quanto ao tema e visando impedir que bons policiais militares respondam pelo crime de abuso de autoridade, tipificado no artigo 3º, alínea ‘b’, da lei 4898/65, o presente estudo vem amparar o ingresso forçado no domicílio alheio, quando a ação policial seja guiada pelo cão farejador, e nesse caso, parece-nos fundamental que o policial documente por escrito a diligência, de preferência com registro por vídeo, fazendo constar o motivo do ingresso na residência, com base no faro manifestado pelo cão, demonstrando, assim, as fundadas razões que afastam o dolo na violação de domicílio, mesmo se não nenhum crime for constatado.[13]
Note-se que o Pleno do Supremo Tribunal Federal (STF), por sua vez, em 2015, no RE 603.616-RG/GO – Rel. Min. Gilmar Mendes – J. 05.11.15, diante da cláusula constitucional de que “a casa é o asilo inviolável do indivíduo” e da autorização para ingresso no domicílio em caso de flagrante delito (art. 5º, inc. XI, da CF), , assentou entendimento de que o ingresso forçado na residência somente pode ocorrer quando existir fundadas razões que justifiquem tal procedimento antes da realização da medida policial, assim decidindo: “ (...) A entrada forçada em domicílio, sem uma justificativa prévia conforme o direito, é arbitrária. Não será a constatação de situação de flagrância, posterior ao ingresso, que justificará a medida. Os agentes estatais devem demonstrar que havia elementos mínimos a caracterizar fundadas razões (justa causa) para a medida. (...).”
Para o STF, a situação de flagrante delito deve dar a certeza, anterior, para autorizar o ingresso forçado na residência alheia, hipótese da existência de fundadas razões para suspeitar de flagrante de tráfico de drogas, resultando daí a tese do mencionado RE 603.616-RG/GO: “Fixada a interpretação de que a entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita, mesmo em período noturno, quando amparada em fundadas razões, devidamente justificadas a posteriori, que indiquem que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade dos atos praticados.”
Em consequência, entendemos que o emprego do cão farejador ao sinalizar o encontro de entorpecente, detectado fora do domicílio, está albergado no conceito de fundadas razões, pois estará configurando, assim, fortíssimo indício que autorizará o ingresso na residência, por parte da Polícia, para a apreensão da droga ali identificada pelo cão farejador, bem como, por consequência a realização da prisão em flagrante do autor do crime (art. 33 da Lei 11.343/06).
Nessa hipótese, então, não haveria dolo ou abuso pela Polícia, vez que estariam amparados tecnicamente ao ingresso forçado no domicílio alheio, agindo, pois, de boa-fé.
De se registrar que o STF tem entendimento assentado de que no caso de tráfico de drogas na residência, que é crime permanente, não constituiu prova ilícita a prisão do traficante e a apreensão do entorpecente, as quais independem de mandado judicial de busca e apreensão domiciliar (HC 84.772/MG, Rel. Min. Ellen Gracie, J. 19.10.04 e RHC 121.419/SP, Rel. Min. Ricrado Lewandowiski – J. 02.09.14)
Outra questão que surge é a hipótese dos policiais, com emprego do cão farejador, se depararem com a residência abandonada ou desabitada. Nesses casos, não há de se falar em crime de violação de domicílio, visto que o objeto jurídico é a tranquilidade doméstica, situação essa que se diferencia da casa onde há ausência momentânea de seus moradores, e em que a violação do domicílio, fora das formalidades legais, constitui crime.[14]
4. O cão farejador utilizado pela polícia e sua correlação com a legalidade da prova
Dentre os assuntos abordados no processo penal um que é de elementar estudo é o tema da prova. Dentro do Estado Democrático de Direito não há que se falar em execução da pretensão punitiva estatal sem que a decisão que a reconheça esteja lastreada com elementos probatórios suficientes para tanto. Sobre o tema escreve o renomado doutrinador Antônio Magalhães Gomes Filho: “O tema da prova é dos mais importantes da ciência do processo, na medida em que a correta verificação em que se assentam as pretensões das partes é pressuposto fundamental para a prolação da decisão justa. Isso vale, ainda mais, no âmbito penal, pois só a prova cabal do fato criminoso é capaz de superar a presunção de inocência do acusado, que representa a maior garantia do cidadão contra o uso arbitrário do poder punitivo ”[15].
Assim, somente se rompe o estado de inocência do indivíduo não só se houver provas suficientes para tanto, provando a materialidade e a autoria delitiva, mas também se estas provas são produzidas sem violação das regras e princípios constantes no diploma legal e constitucional. O faro do cachorro ao dar elementos suficientes para a polícia ingressar na residência torna a busca e apreensão licita, pois preenche o requisito constitucionalmente exigido para o ingresso na residência sem mandado judicial e como consectário as provas derivadas da busca e apreensão não serão contaminadas pela teoria do fruto da árvore envenenada.
5. Conclusão
Assim, para que o policial possa ingressar sem autorização judicial, seguindo uma interpretação que vise a concordância prática ou harmonização constitucional, deve haver uma ponderação do bem jurídico que está sendo violado pela conduta em flagrante. Diante da proporcionalidade em sentido lato, deve o policial militar observar se a medida é adequada, necessária e proporcional. Adequada se a limitação do direito fundamental atingir o objetivo adequado. Necessária se o meio empregado é o menos lesivo ao direito. Observando a proporcionalidade em sentido estrito, aferirá se o bem jurídico violado é de igual ou menor importância que o bem jurídico que visa proteger.
Como acima concluímos é inegável que a manifestação do faro do cachorro, diante da sua estrutura biológica acima discorrida, demonstra sim que no local indicado pelo cão há fundada razão para concluir sobre o flagrante delito estar sendo praticado dentro de um domicílio, autorizando no caso de encontro de entorpecente o seu ingresso sem autorização judicial, uma vez que tal procedimento estará calcado no bem jurídico protegido e no perigo da demora, afastando a necessidade de mandado judicial de busca e apreensão ou mesmo exigir a presença do juiz natural da causa[16]. De igual modo, no caso de extorsão mediante sequestro, que também é um crime permanente, caso o animal fareje a vítima e aponte determinado local como sua provável localização, deverá o policial militar ingressar na residência sem mandado judicial, eis que o bem jurídico tutelado e a urgência da situação permitem a violação desse direito fundamental, aplicando a fórmula da proporcionalidade.
No caso do cachorro farejar entorpecente na residência, situação essa que induz à prática do delito do art. 33 da Lei Antidrogas, configurada está a fundada razão para o flagrante delito e também está configurado o perigo da demora, de forma que, nessa hipótese, cabe ao policial, civil ou militar, decidir sobre a necessidade do ingresso no domicílio para fazer cessar o crime, permanente, prendendo o infrator, e apreendendo o entorpecente visto que, nesse caso, é dispensável o mandado judicial (art. 5º, inciso XI, da CF).
Assim, a urgência da medida policial, no caso concreto, é que vai determinar a medida a ser adotada, de forma que quando do encontro de entorpecente, por meio ou com o auxílio do cão farejador no interior de residência, diante da existência de crime permanente, haverá ensejo para o ingresso no domicílio sem o mandado judicial, seja para coibir esse tipo de crime – permanente -, seja para assegurar o encontro da materialidade daquele, bem como para reprimir a prática delituosa por meio da situação de flagrante delito, tudo em conformidade com a autorização constitucional (art. 5º, inciso XI) e a normatização processual que determina ao policial prender quem esteja na prática de crime (art. 301 do CPP e art. 243 do CPPM).
Assim, entre o direito fundamental de inviolabilidade de domicílio e o dever da segurança pública nas missões realizadas pela Polícia, há de se ter definido, com segurança, o procedimento da atuação policial sem incorrer em abuso, o que, do contrário, implicará responsabilização disciplinar, civil ou penal do agente público.
O emprego do cão farejador nas atividades policiais, além de um importante auxílio profissional, traz segurança no encontro de pessoas e materiais ilícitos como entorpecente, ou de outro objeto procurado (material bélico, celular etc), de forma que a indicação daquele, pelo faro, da descoberta do objeto procurado, constitui-se em fundada razão, autorizando o ingresso forçado no domicílio alheio, constituindo o entorpecente encontrado em prova lícita para a responsabilização criminal do infrator.
NOTAS
[1] Título do artigo https://veja.abril.com.br/brasil/o-duro-trabalho-de-um-cao-farejador/
[2] ROSA, Leandro Edison da. “O emprego de cães de faro nas operações de fiscalização de drogas ilícitas realizadas nos postos do batalhão de polícia militar rodoviária de Santa Catarina”, escreve na página 79: “O Canil da Polícia Militar de Santa Catarina conta com um cão da raça Beagle nas atividades de faro de drogas. O cão denominado “Bono” se mostra com uma grande ferramenta na busca de entorpecentes, suplementando o policiamento e auxiliando as guarnições na efetivação das operações de busca, tornando assim o serviço mais eficiente e eficaz. Isso pode ser consolidado ao verificar o artigo publicado na página eletrônica da PMSC de título: Em São José, Bono localiza droga enterrada em pátio de residência, a qual segue. Mais de 200 pedras de crack, além de cocaína e maconha, foram apreendidas na manhã de ontem, dia 17, em São José. A ação contou com o apoio da Companhia de Policiamento com Cães, e o cão de faro Bono acabou localizando as drogas. As guarnições apreenderam os entorpecentes, após a PM receber denúncia de que no pátio de uma residência de dois pisos, localizada na Rua Dos Operários, havia grande quantidade de drogas enterrada. Com o auxílio do cão Bono, foram localizadas 209 pedras de crack, 420 gramas de maconha,95 buchas de cocaína e R$ 42,00 em dinheiro. As drogas estavam no pátio de uma residência que faz divisa com um matagal, local usado por traficantes e usuários de entorpecentes. Foram realizadas várias abordagens, mas nenhum suspeito foi detido. (VIRÍSSIMO, cidade Florianópolis, editora Universidade do Vale, 18 abr. 2009). ”
[3] BRASILEIRO, Renato de Lima, Manual de Processo Penal, 7º edição, ano 2019, cidade Salvador editora Juspodivum, às folhas 611 e 612
[4] TOURINHO FILHO, Fernando da Costa, livro: “Processo Penal”, 32ª edição, cidade São Paulo, editora Saraiva, volume 4, ano 2010, página 624, escreve: “Muitas vezes, pode ocorrer apreensão sem busca. Assim, por exemplo, se o próprio acusado entrega à autoridade o instrumento do crime, determinará ela a lavratura de auto de apreensão, que receberá o nome de “auto de exibição e apreensão”. Há entendimento no sentido de que o instrumento da “busca e apreensão” não deveria estar no capítulo das provas, uma vez que nem sempre a busca visa à apreensão de um elemento de prova. Na verdade, a busca para “prender criminosos”, “apreender pessoas vítimas de crime”, “coisas obtidas por meio criminoso” tem um acentuado cunho acautelatório e não probatório”.
[5] Art. 243. O mandado de busca deverá: I - indicar, o mais precisamente possível, a casa em que será realizada a diligência e o nome do respectivo proprietário ou morador; ou, no caso de busca pessoal, o nome da pessoa que terá de sofrê-la ou os sinais que a identifiquem; II - mencionar o motivo e os fins da diligência; III - ser subscrito pelo escrivão e assinado pela autoridade que o fizer expedir.§ 1o Se houver ordem de prisão, constará do próprio texto do mandado de busca.§ 2o Não será permitida a apreensão de documento em poder do defensor do acusado, salvo quando constituir elemento do corpo de delito.
[6] PITOMBO, Cleonice Bastos, livro: “Da busca e apreensão no Processo Penal”, 2ª edição, cidade São Paulo, editora Revista dos Tribunais, ano 2005.
[7] BRASILEIRO, Renato de Lima, Manual de Processo Penal, Salvador: Juspodvim, 7º edição, 2019, p. 753.
[8] SARLET, Ingo Wolfgang e WEINGARTNER NETO, Jayme, A inviolabilidade do domicílio e seus limites: o caso do flagrante delito, Curitiba: Revista de Direitos Fundamentais e Democracia, volume 14, número 14 páginas 544-562, junho/dezembro de 2013.
[9] FARIAS, Cristiano Chaves de, BRAGA NETTO, Felipe, ROSENVALD, Nelson, Manual de Direito Civil, 4ª Edição, Salvador, Juspodivum, página 506.
[10] Nesse sentido escreve Gustavo Badaró escreve no site http://badaroadvogados.com.br/ano-2011-prisao-em-flagrante-delito-e-liberdade-provisoria-no-codigo-de-processo-penal-origens-mudancas-e-futuro-de-um-complicado-relacionamento.html : “Em seu novo regime, a prisão em flagrante se restringirá a um momento inicial de imposição de medida cautelar de prisão. Justamente por isso, tem sido considerada uma “pré-cautela”. Em outras palavras, a prisão em flagrante somente subsistirá entre a lavratura do auto de prisão em flagrante e a análise judicial da legalidade da prisão e da necessidade de manutenção de prisão cautelar ou de sua substituição por medida diversa da prisão. Após a comunicação do auto de prisão em flagrante delito, o art. 310, caput, prevê que o juiz terá três alternativas: I - relaxamento da prisão, se ilegal; II - decretação da prisão preventiva, se não for cabível qualquer outra medida alternativa; e III - conceder a liberdade provisória, com ou sem fiança. Neste caso, o inciso III do art. 310 deve ser complementado pelo disposto no art. 321, isto é, conceder a liberdade provisória, isoladamente, ou cumulada com outra medida cautelar. Não basta mais que o juiz conclua que “o flagrante está formalmente em ordem”. Se assim o fizer, sem indicar concretamente o motivo pelo qual a prisão em flagrante deverá ser convertida em prisão preventiva (art. 310, caput, inc. II, primeira parte), a manutenção do acusado preso caracterizará constrangimento ilegal, por ausência de motivação para a prisão. Mas isto ainda não basta. Para converter a prisão em flagrante em prisão preventiva será necessário justificar, concretamente, serem “inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão” (art. 310, caput, inc. II), bem como não ser o caso de concessão de “liberdade provisória, com ou sem fiança” (art. 310, caput, inc. III).”
[11] CONJUR: Crime permanente: STJ julga válida busca sem mandado após policiais sentirem cheiro de maconha, capturado em 20.05.19 no link: https://www.conjur.com.br/2018-fev-26/valida-busca-mandado-policial-sentir-cheiro-maconha
[12] Para comentarmos os julgados foi utilizado como fonte o livro “Vade Mercum de Jurisprudência Dizer o Direito”, autor Márcio André Lopes Cavalcante, Salvador, Juspodivum, edição 2019, 6ª edição, página 983
[13] CONJUR: Ação por tráfico é extinta no STF porque policiais invadiram casa sem mandado, capturado em 03.06.19 no link: https://www.conjur.com.br/2017-abr-20/acao-extinta-porque-policiais-invadiram-casa-mandado
[14] JESUS, Damásio E. de. Direito Penal – Parte Especial, vol. 2. São Paulo: Saraiva, 30ª ed., 2010, pp. 303/304.
[15] GOMES FILHO, Antônio Magalhães, Notas sobre a terminologia da prova (reflexos no processo penal brasileiro). Estudos em Homenagem à Professora Ada Pellegrini Grinover. São Paulo, DPJ Editora, 2005, página 303.
[16] Lembrando que, segundo redação do artigo 241 do Código de Processo Penal, se autoridade judicial estiver presente na diligência de busca domiciliar é desnecessária a emissão de mandado de busca e apreensão.
O presente artigo foi originariamente publicado na Revista Direito Militar – AMAJME -, 2019, nº 136, pp. 29/35.
Ronaldo João Roth é Juiz de Direito Titular da Primeira Auditoria Militar do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, mestre em Direitos Humanos pela UniFieo, Professor de Direito Penal na Academia de Polícia Militar do Barro Branco (APMBB) e Coordenador e Professor no Curso de Pós-Graduação de Direito Militar da Escola Paulista de Direito (EPD).
Ana Paula Farnesi é Bacharel em Medicina Veterinária, mestre e doutora pela Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto e Escrevente do TJ/SP.
Eduardo Rodrigues Barcellos é Bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo, Especialista em Direito Processo Penal pelo Complexo Educacional Damásio de Jesus, Mestrando em Direito Penal pela PUC/SP, Escrevente da JME/SP.