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Rodrigo Foureaux

Juiz de primeira instância pode condenar militares estaduais que sejam praças à perda do cargo públi

Este texto concentra-se na análise da decretação da perda do cargo das praças por juiz de primeira instância, uma vez que a perda do cargo de oficiais já foi analisada no texto “A impossibilidade de juízes condenarem Oficiais das Instituições Militares à perda do posto e da patente”.


A hierarquia dos militares estaduais subdivide-se em oficiais e praças (art. 8º do Decreto-Lei n. 667/69).


A hierarquia militar é a ordenação em postos e graduações dentro da estrutura das Instituições Militares.


Posto é o grau hierárquico dos oficiais, que em âmbito estadual, é conferido pelo Governador do Estado.


Graduação é o grau hierárquico das praças que, em âmbito estadual, geralmente, é conferido pelo Comandante-Geral.


Os oficiais podem ser: a) Coronel; b) Tenente-Coronel; c) Major; d) Capitão; e) 1º Tenente e f) 2º Tenente. As praças podem ser: a) Aspirante-a-Oficial; b) Alunos da Escola de Formação de Oficiais da Polícia; c) Subtenente; d) 1º Sargento; e) 2º Sargento; f) 3º Sargento; g) Cabo; h) Soldado de 1ª Classe; i) Soldado de 2ª Classe e j) Soldado de 3ª Classe.1


Os postos e graduações que cada instituição militar possui é uma questão de organização administrativa da instituição em âmbito estadual, pois é possível suprimir, mediante lei estadual, na escala hierárquica, um ou mais postos ou graduações e subdividir a graduação de soldado em classes, até o máximo de três.2


Cargo público militar é o conjunto de atribuições, deveres e responsabilidades, definidas por lei ou regulamento e cometido, em caráter permanente, a um militar.3


Os cargos militares são providos com pessoal que satisfaça aos requisitos de grau hierárquico e de qualificação exigidos para o seu desempenho.4


Nota-se que todo cargo militar deve ser ocupado por militar que satisfaça o grau hierárquico compatível com a função, ou seja, a todo cargo corresponde um posto ou graduação.


O cargo de comandante de um Batalhão, certamente, será exercido por um oficial no posto de Tenente Coronel, enquanto que o cargo de um patrulheiro de viatura, certamente, será exercido por um Soldado ou Cabo, enquanto que o Comandante da Viatura, certamente, será um Sargento. Tudo dependerá de normas próprias que regem a carreira militar.

Demonstrado quem são as praças em uma instituição militar estadual, deve-se analisar a competência para a decretação da perda do cargo público das praças.


O art. 125, § 4º, da Constituição Federal trata do julgamento de crimes militares e assegura que cabe ao tribunal competente decidir sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças.


Art. 125. Os Estados organizarão sua Justiça, observados os princípios estabelecidos nesta Constituição.

§ 4º Compete à Justiça Militar estadual processar e julgar os militares dos Estados, nos crimes militares definidos em lei e as ações judiciais contra atos disciplinares militares, ressalvada a competência do júri quando a vítima for civil, cabendo ao tribunal competente decidir sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)

Assim, as praças somente perderão a graduação, nos crimes militares, por julgamento do tribunal competente, que será o tribunal de justiça militar onde houver (Minas Gerais, São Paulo e Rio Grande do Sul) e o tribunal de justiça comum nos demais estados.


Nota-se que o art. 125, § 4º, da Constituição Federal refere-se ao julgamento pelo tribunal competente para decidir sobre a perda da graduação somente nos crimes militares. Portanto, não há óbice constitucional ou legal para que uma praça seja condenada por crime comum e o juiz decrete a perda do cargo público.


Somente para oficiais das instituições militares foi previsto o julgamento da perda do posto e da patente por um tribunal militar - onde houver (MG, SP e RS) e do tribunal de justiça comum nos demais estados. - quando se tratar de condenações por crimes comuns, o que reforça a possibilidade da Justiça Comum condenar praças à perda do cargo, ainda que por um juiz de primeira instância. A ausência de menção das praças no art. 142, § 3º, VII, da Constituição Federal é silêncio eloquente, intencional, o que demonstra a impossibilidade de se aplicar este dispositivo constitucional às praças.


Art. 142. § 3º (...)

VI - o oficial só perderá o posto e a patente se for julgado indigno do oficialato ou com ele incompatível, por decisão de tribunal militar de caráter permanente, em tempo de paz, ou de tribunal especial, em tempo de guerra; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 18, de 1998)

VII - o oficial condenado na JUSTIÇA COMUM OU MILITAR a pena privativa de liberdade superior a dois anos, por sentença transitada em julgado, será submetido ao julgamento previsto no inciso anterior; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 18, de 1998)


Nesse sentido, recentemente, o Tribunal de Justiça Militar de Minas Gerais5 reformou uma sentença e consignou na fundamentação que “a decretação da perda do cargo público dos apelantes em primeiro grau de jurisdição viola o disposto no art. 125, § 4º da Constituição da República.”


O Supremo Tribunal Federal6 ao analisar um caso em que uma praça fora condenado à perda do cargo público pela primeira instância da Justiça Militar, deu provimento parcial ao recurso para excluir da condenação a pena de perda da graduação imposta pelo Conselho Permanente da Justiça Militar, pois a competência para tal é do tribunal de justiça mediante a instauração de procedimento próprio. Isto é, a confirmação da perda da graduação em segunda instância não é suficiente para que ocorra a perda da graduação. É necessário que se instaure procedimento próprio e específico para analisar se o militar deve perder a graduação.


É no procedimento próprio para a perda da graduação que será analisado todo o histórico funcional do militar, o número de recompensas e punições durante toda a vida profissional, as circunstâncias em que o crime que foi praticado ocorreu, a repercussão disso em âmbito institucional e perante a sociedade. Há uma série de análises que são impróprias para serem decididas no bojo do processo judicial, razão pela qual exige-se, nos crimes militares, em razão de previsão constitucional, que seja instaurado um procedimento próprio.


Quando a Constituição Federal menciona que cabe ao tribunal competente decidir sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças diz que essa perda deve ser analisada em procedimento próprio, pois a finalidade é realizar toda uma análise, conforme acima explicado, e se fosse possível condenar em segunda instância sem que houvesse um procedimento próprio criaria uma situação inusitada e absurda de exigência de recurso da sentença para que o tribunal decida sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças. A instauração de um procedimento próprio pode ocorrer ainda que não haja recurso da sentença, mediante representação do Ministério Público perante o tribunal competente.


Em 08 de junho de 2020, o Supremo Tribunal Federal, no Recurso Extraordinário 601.146, conforme voto vencedor do Ministro Alexandre de Morares, decidiu que no campo judicial, para os policiais militares perderem a graduação, é necessária a incidência do procedimento previsto pelo artigo 125, §4º da Constituição Federal.


Nesse sentido é a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça.


HABEAS CORPUS. CONCUSSÃO. ART. 305 DO CÓDIGO PENAL MILITAR. POLICIAL. CONDENAÇÃO. PERDA DO CARGO DECRETADA EM SEDE DE PROCEDIMENTO ESPECÍFICO. OBSERVÂNCIA DO DEVIDO PROCESSO LEGAL. ART. 125, § 4º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO CONFIGURADO. DENEGAÇÃO DA ORDEM. 1. Ao interpretar o artigo 125, § 4º, da Constituição Federal, especialmente após as alterações promovidas pela Emenda Constitucional 19/1998, o Supremo Tribunal Federal posicionou-se no sentido da necessidade de processo específico para a perda de graduação de praças da Polícia Militar, entendimento seguido pelo Superior Tribunal de Justiça. 2. In casu, a perda da graduação decorreu de processo específico, nos termos do art. 125, § 4º, da Constituição Federal e não como efeito secundário da condenação por crime militar, observados, portanto, os princípios do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa. 3. Ordem denegada. ..EMEN: (HC - HABEAS CORPUS - 185112 2010.01.70021-9, JORGE MUSSI, STJ - QUINTA TURMA, DJE DATA:29/08/2011 ..DTPB:.)


Salienta-se que o tema apresenta decisões divergentes dentro do Supremo Tribunal Federal, uma vez que em 21/05/2015, no Recurso Extraordinário n. 447.859, foi decidido que “Relativamente a praça, é inexigível pronunciamento de Tribunal, em processo específico, para que se tenha a perda do posto.”, o que agora foi pacificado com o julgamento do Recurso Extraordinário n. 601.146. Equivocadamente, o julgado menciona a perda do posto da praça, que sabidamente possui graduação, e não posto, conforme explicado.


É importante ressaltar que não é possível justificar que a condenação em primeira instância decreta a perda do cargo, sem, no entanto, decretar a perda da graduação.


Isso porque a relação entre cargo, praça e graduação é intrínseca. Não é possível que haja um cargo ocupado por uma praça sem graduação. É como se fosse um corpo sem alma. A graduação está para a praça, assim como o crime está para o Direito Penal.


Não é possível que uma praça perca o cargo, mas mantenha a graduação ou que perca a graduação, mas mantenha o cargo. A perda de um implica, necessariamente, na perda do outro.

Matheus Carvalho7 ensina que “Todo cargo público é criado mediante a edição de lei, fazendo parte da estrutura de um órgão público e, necessariamente, lhe será atribuída uma função. Não existe cargo sem função, não obstante exista função sem cargo.”


A função é a atividade em si mesmo, corresponde à atribuição e às tarefas que são de responsabilidade do agente que ocupa um cargo público.


Assim, se uma praça é condenada à perda do cargo público, não poderá mais exercer os deveres, atribuições e responsabilidades. A razão de ser da graduação, que é inserir o militar dentro de uma organização militar hierárquica em determinado cargo, se esvazia e, consequentemente, torna-se sem validade jurídica, o que implica na perda automática da graduação. Manter a graduação quando se decreta a perda do cargo público seria como manter o Direito Penal e abolir todos os crimes. Não há sentido algum.


Não se deve cogitar, também, que a praça que venha a perder o cargo público deve ser transferida para a reserva não remunerada, pois não existe, em lei, essa previsão de reserva não remunerada para quem perde o cargo público em razão de condenação judicial. Seria uma criação judicial, sem previsão em lei.


Em Minas Gerais, por exemplo, o art. 138 do Estatuto dos Militares – Lei n. 5.301/69 – dispõe que a praça será transferida para a reserva não remunerada se solicitar baixa do serviço ou se candidatar e for eleito para a função ou cargo público. Não há previsão em lei de transferência para a reserva não remunerada de militares condenados à perda do cargo e aventar tal hipótese mediante decisão judicial seria legislar por via judicial, o que não se pode admitir, sob pena de ofensa à separação de poderes e exacerbado ativismo judicial.


A condenação à perda da graduação implica em um único resultado: exclusão do Quadro de Praças da Instituição Militar a que pertencer (demissão), de forma que o condenado volte a ser civil, sequer passará para a reserva não remunerada.


Caso a primeira instância condene uma praça à perda do cargo, sob a justificativa de que não está a condenar à perda da graduação, pois são conceitos distintos, na verdade, está a utilizar um meio inconstitucional de, por vias transversas, burlar o art. 125, § 4º, da Constituição Federal.


Todas as leis que prevejam a perda do cargo como efeito automático da condenação criminal, devem sofrer interpretação conforme a Constituição, quando se tratar do julgamento de crime militar (art. 125, § 4º), pois a competência será sempre do tribunal competente.

A Lei de Tortura – Lei n. 9.455/97 – prevê a perda do cargo público como um efeito automático da condenação (art. 1º, § 5º) e desde o advento da Lei n. 13.491/17 o crime de tortura pode ser crime militar, como o exemplo do militar que pratica tortura em serviço (art. 9º, II, “c”, do CPM).

A Lei de Organizações Criminosas – Lei n. 12.850/13 – também prevê a perda do cargo público como um efeito automático da condenação (art. 2º, § 6º), caso o servidor público componha organização criminosa, o que pode ser aplicado aos militares diante da Lei n. 13.491/17.

No caso de crime militar de tortura e crime militar por constituir organização criminosa, não há efeito automático da condenação à perda do cargo, devendo, após o trânsito em julgado do processo, o juiz de primeira instância remeter os autos ao tribunal competente, para, se for o caso, ser instaurado procedimento próprio para a perda do cargo e da graduação.

Caso o militar pratique o crime de tortura comum – e não militar -, como a hipótese em que o militar de folga torture uma pessoa sob seu poder com o fim de aplicar castigo pessoal, a Justiça Comum será a competente para julgá-lo e poderá decretar a perda do cargo e da graduação.


O art. 102 do Código Penal Militar prevê que “A condenação da praça a pena privativa de liberdade, por tempo superior a dois anos, importa sua exclusão das fôrças armadas.”


Uma simples leitura do dispositivo permite afirmar que não se aplica às forças militares estaduais, por não serem mencionadas no art. 102 do CPM e por ser vedada analogia em prejuízo do réu no direito penal.


Independentemente, dessa discussão, o Supremo Tribunal Federal8 já pacificou que o art. 102 do Código Penal Militar não foi recepcionado pela Constituição em relação aos militares estaduais, por ser necessário, em vista do disposto no art. 125, § 4º, da Constituição Federal, um procedimento próprio.


Em se tratando de condenação de praças por crimes militares que possam resultar na perda da graduação, é indiferente o quantum da pena, diferentemente, da condenação dos oficiais, que para serem levados a julgamento que possa resultar na perda do posto e da patente devem ter sido condenados a uma pena privativa de liberdade superior a dois anos (art. 142, § 3º, VII, CF).


Deve-se salientar que o art. 125, § 4º, da CF/88, não impede a perda da graduação de militar mediante procedimento administrativo (Súmula 673 do STF). Isto é, a instituição militar estadual poderá apurar a infração disciplinar administrativamente e decidir pela exclusão do militar das fileiras da Corporação.


Por fim, nas ações decorrentes de improbidade administrativa, é perfeitamente, possível, a decretação da perda do cargo e da graduação da praça por decisão de primeira instância, face à inexistência de previsão legal ou constitucional que preveja ser competência do tribunal.


Ante todo o exposto é possível concluir que:


a) as praças somente podem ser condenadas à perda do cargo público e da graduação, nos crimes militares, pelo tribunal competente, ou seja, pelo tribunal de justiça militar em MG, SP e RS e pelo tribunal de justiça comum nos demais estados (art. 125, § 4º, da CF);


b) a condenação à perda do cargo e da graduação pelo tribunal competente requer procedimento próprio, não devendo ser analisado pelo tribunal em sede de recurso;


c) as praças podem perder o cargo e graduação por decisão de primeira instância se for crime comum ou ato de improbidade administrativa, seja este julgado pela justiça comum ou militar;


d) as praças podem perder o cargo e a graduação em processo administrativo disciplinar, sem necessidade de remessa do processo à justiça, mediante decisão da própria Corporação.



Rodrigo Foureaux é Juiz de Direito do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás. Foi Juiz de Direito do TJPA e do TJPB. Aprovado para Juiz de Direito do TJAL. Oficial da Reserva Não Remunerada da PMMG. Membro da Academia de Letras João Guimarães Rosa. Bacharel em Direito pelo Centro Universitário Newton Paiva e em Ciências Militares com Ênfase em Defesa Social pela Academia de Polícia Militar de Minas Gerais. Mestrando em Direito, Justiça e Desenvolvimento pelo Instituto de Direito Público. Especialista em Direito Público pela Universidade Cândido Mendes. Autor de livros jurídicos. Foi Professor na Academia de Polícia Militar de Minas Gerais. Palestrante.


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