Introdução
É comum um mantra que é entoado em que o inquérito é um procedimento inquisitorial e não existem partes e, por tal razão, não é dado o constitucional direito do contraditório e ampla defesa. Isto não é verdade pois, com a evolução, o indiciado não é mais objeto de prova e sim sujeito de direito.
Finalidade do Inquérito Policial Militar
O artigo 9º do CPPM define o inquérito policial militar como uma operação sumária, tendo como finalidade precípua fornecer elementos ao Ministério Público para oferecer denúncia: “Art. 9º - O inquérito policial militar é a apuração sumária de fato que, nos termos legais, configure crime militar e de sua autoria. Tem o caráter de instrução provisória, cuja finalidade precípua é a de ministrar elementos necessários à propositura da ação penal.”
Na literalidade do CPPM fica o inquérito a serviço do Ministério Público, visão não mais aceita no atual Estado Democrático de Direito.
Com a nova ordem constitucional à qual vimos nos referindo constantemente, favorecendo o status libertatis em uma interpretação favor rei, deve-se conceber como finalidade do inquérito policial militar- assim como de toda polícia judiciária militar- a busca da revelação do que, de fato, ocorreu, seja confirmando a autoria e materialidade de um crime, seja afastando-as em favor da pessoa a quem foi imputado um fato, prestigiando-se no Direito Processual Penal Constitucional, uma busca autônoma da verdade real. (Neves, 4 ed., 2020, p. 324,325)
E é nessa busca de elementos de prova do suposto fato delituoso - porém sem estar a serviço do Ministério Público -, surge ao inquérito policial militar a finalidade de filtragem de acusações desprovidas de justa causa.
[...] a investigação preliminar serve como filtro processual para evitar acusações infundadas, seja porque despidas de lastro probatório suficiente, seja porque a conduta não é aparentemente criminosa. O processo penal é uma pena em si mesmo, pois não é possível processar sem punir e tampouco punir sem processar, pois é gerador de estigmatização social e jurídica (etiquetamento) e sofrimento psíquico. Dai a necessidade de uma investigação preliminar para evitar processos sem suficiente fumus commissi delicti. (Lopes Jr., 17ª Ed., p. 138)
Portanto, no atual estágio constitucional a finalidade do IPM é de busca autônoma de autoria de determinado delito e de filtro processual contra acusações sem justa causa. Logo, para que seja respeitado o inquérito como um filtro processual, deve ser dado o direito do indiciado se defender e ele pode se defender provando. Sendo-lhe dado o direito a uma participação mais ativa, é evidente que essa participação não é durante a investigação em curso, e sim com base nos elementos de prova já produzidos e indicando outros elementos ao encarregado.
O Inquérito não se trata apenas de um procedimento meramente administrativo
A forma argumentativa de se negar o contraditório e ampla defesa no inquérito é afirmando ser o mesmo uma peça meramente administrativa.
Por mais que seja o inquérito um procedimento feito pela administração, o mesmo vai muito além de ser uma mera peça, pois com o inquérito é possível retirar tudo do indiciado: é possível prender (preventiva e temporariamente); é possível invadir a privacidade (interceptação telefônica, sigilo telefônico e etc.); é possível devassar o sagrado domicílio (busca e apreensão); é possível invasão ao patrimônio (sequestro, arresto). Evidente que tudo com respeito a reserva de jurisdição.
Restando assim evidente que com o inquérito bens jurídicos importantes podem ser atingidos, sendo imperioso que seja dado ao indiciado o direito de proteger esses preciosos bens.
Procedimento Sujeito a Ampla Defesa e Contraditório.
Dúvidas não mais existem que o inquérito tem o poder de invadir importantes bens jurídicos, sendo assim imperioso o direito do contraditório e da ampla defesa.
Ultrapassando a discussão de não ser o inquérito um processo e por isso não possuir parte - logo não seria viável a ampla defesa e contraditório -, o sistema constitucional mostra ao contrário.
Ora, se o indiciado quiser ficar em silêncio, se não quiser fornecer sua escrita para perícia grafotécnica ou voz para perícia, não seria isto o seu direito de defesa sendo exercido? É imperioso o respeito a ampla defesa no inquérito: seja o indiciado exercendo em seu favor a sua autodefesa - positiva ou negativamente -, seja porque ele resolveu constituir defensor para que seja exercida a defesa técnica.
Quanto ao contraditório, ele é exercido mesmo que após as diligências realizadas. Inclusive, com base na produção da diligência, pode o defensor constituído requerer à autoridade produções de elementos de prova que, caso sejam negados pela autoridade de polícia judiciária, deve ela fundamentar porque está negando - não é dado o direito à autoridade simplesmente negar porque quer negar.
[...] nada impede que o indiciado participe do procedimento requerendo à autoridade policial judiciária a realização de diligência, a oitiva de testemunha, a realização de perícias, etc. (Saraiva, 2017, p. 21)
Contraditório e ampla defesa em sede de inquérito são facilmente encontrados nas legislações como, por exemplo, no artigo 7ª, XXI da Lei 8906/94 (Estatuto da Advocacia), inciso acrescentado com a Lei 13.245/16, frente à omissão do CPPM pode ser aplicado com fulcro no art. 3ª ‘a’ e se socorrer do artigo 14 do CPP, que permite ao indiciado requerer diligência. Além da inovação legislativa com a Lei 13.964/2019 que incluiu o artigo 16-A, tornando obrigatória a presença de defensor naqueles casos ali elencados.
Com efeito, é preciso reconhecer o contraditório e a ampla defesa como características básicas do inquérito policial, evitando-se a equivocada mensagem de que a defesa é algo a ser colocada em segundo plano na investigação preliminar (Hoffmann, Henrique, p.7)
Conclusão
Mostra-se evidente que uma das finalidades do inquérito é servir como filtro de acusações infundadas. Como o mesmo invade a esfera de bens e garantias fundamentais, há que existir no inquérito o direito do contraditório e ampla defesa - evidentemente respeitando-se a investigação e com a defesa atuando após a documentação dos elementos de prova. Bem como sendo dado o direito de se defender provando, ou seja, indicando ao encarregado elementos de provas que podem apontar pra inocência do indiciado.
Referências:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del1002.htm
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8906.htm
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689compilado.htm
LOPES JR., Aury, Direito processual penal-17 ed., 2020: Saraiva
NEVES, Cícero Robson Coimbra. Manual de direito processual penal militar. 4 ed.: Editora JusPODIVM, 2020.
Polícia Judiciária no Estado de Direito/ Henrique Hoffmann, Leonardo Marcondes Machado, Márcio Adriano Anselmo, Ruchester Marreiros Barbosa. 1. Ed. Rio de Janeiro: Lumens Juris, 2017.
Saraiva, Alexandre José de Barros Leal. Manual básico da polícia judiciária militar, Ed. Juruá, 2017.
José Osmar Coelho é Advogado, especialista em Direito Militar pela Universidade Cruzeiro do Sul, especialista em Ciências Criminais pela Universidade Cândido Mendes, especialista em Direito Constitucional pela Faculdade de Estudos Administrativos de Minas Gerais, FEAD, Especialização em Política e Estratégia pela Universidade do Estado da Bahia, MBA em Gestão da Inteligência Estratégica pela Faculdade Batista Brasileira, Professor de Pós Graduação de Direito Penal e Processo Penal Militar, membro fundador do Instituto baiano de Direito Militar.