1. Introdução
Pode-se constatar que ao longo dos últimos anos as políticas públicas implementadas para o melhor enfrentamento da criminalidade têm centrado atenções na Justiça comum e esquecido os conflitos sociais que envolvem os servidores públicos militares. Diversas foram as alterações introduzidas no Código Penal comum e no Código de Processo Penal comum que visaram qualificar a intervenção punitiva, bem como obter maior efetividade na relação processual penal. Tais avanços político-criminais, formalmente, não repercutiram nos estatutos utilizados na Justiça Militar.
Contudo, é inconcebível que a operação da Justiça Militar se mostre desarticulada das opções político-criminais formuladas pelo Estado brasileiro. Não é possível admitir que os esforços do Poder Público para a melhor compreensão do fenômeno da criminalidade e para o aprimoramento de sua intervenção punitiva deixem de produzir efeitos em relação aos servidores públicos militares. Por isso, muitos magistrados da Justiça Militar passaram a incorporar em seus julgados os avanços introduzidos na legislação penal e processual aplicada na Justiça comum.
Com base no permissivo do art. 3º do Código de Processo Penal Militar, os juízes da Justiça Militar passaram a determinar a suspensão do processo nos casos de réu revel citado por edital e permitir perguntas das partes no interrogatório, que passou a ser realizado ao final da instrução. A oitiva das testemunhas passou a se operar por meio de perguntas formuladas diretamente pelas partes e também passou a ser possível a absolvição sumária. Reconhecendo a necessidade de atualizar o Direito Processual Penal Militar com os avanços democráticos do Direito Processual Penal comum, o Supremo Tribunal Federal decidiu que a realização do interrogatório do réu militar deve ser feito ao final da instrução (HC-127900), em clara demonstração de que a ampla defesa também deve ser conferida aos réus militares.
No trato das questões de natureza penal, os juízes da Justiça Militar passaram a realizar a dosimetria da pena em três fases, a definir o regime para o cumprimento da pena privativa de liberdade, a exasperar a pena de um só dos crimes nos casos de crime continuado, a aplicar os benefícios da transação penal e da suspensão condicional do processo, previstos na lei dos Juizados Especiais Criminais, bem como substituir a pena privativa de liberdade imposta em condenação por penas restritivas de direitos e multa nos termos previstos no Código Penal comum.
No entanto, os institutos negociais da justiça penal recebem forte resistência da doutrina e jurisprudência militar. O acordo de não persecução penal, inserido pela Lei nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019, no art. 28-A do Código de Processo Penal renova o debate sobre a possibilidade de aplicação de acordos no âmbito da Justiça Militar. A preocupação dos operadores mais conservadores se eleva com o potencial de aplicação do instituto aos crimes propriamente militares.
Neste universo jurídico formalmente desarmônico, desproporcional e certamente injusto, a atuação corretiva do juiz especializado ganha especial relevo. O magistrado materializa as respostas oficiais que o Poder Público oferece aos conflitos sociais e deve preservar a racionalidade e coerência do sistema normativo que aplica. Para se desincumbir deste mister, o juiz deve orientar a sua análise pelos princípios constitucionais norteadores da intervenção punitiva e seus reflexos sobre as peculiaridades do Direito Militar. Cabe observar que, no Estado de Direito Constitucional, a exigência de coerência para as respostas do Poder Público prescinde de previsão legal expressa. O coerência interna é uma característica natural de qualquer sistema normativo.
É necessário compreender o ordenamento jurídico como um sistema, cujas características fundamentais são a ordenação e a unidade. Mais do que premissas teorético-científicas, a adequação valorativa e a unidade interna do ordenamento jurídico são condições inafastáveis do trabalho hermenêutico. Conceber a ordem jurídica como sistema é consequência natural dos mais elevados valores do Direito, como os princípios de justiça e igualdade, em sua atuação generalizante (CANARIS, 1989, p. 14 e p. 20-22). Certamente, a realização desses princípios exige que o Direito se apresente adequadamente ordenado, tendo a Constituição como diretriz do sistema de articulação de princípios fundamentais (CANOTILHO, s/d, p. 1.137).
2. Direito fundamental ao tratamento isonômico
Incialmente, cabe observar que o servidor público militar também tem o direito ao tratamento isonômico. Qualquer tratamento diferenciado conferido aos servidores públicos militares deve se fundamentar em expressa previsão constitucional.
No art. 5º da Constituição da República Federativa do Brasil encontramos a previsão fundamental de que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza. Em disposições que expressamente excepcionam a regra fundamental da isonomia em relação aos militares, temos a possibilidade de aplicação de pena de morte, em caso de guerra declarada (XLVII, a) e a possibilidade de prisão nos casos de transgressão militar ou de crime propriamente militar sem ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciaria (LXI). No âmbito do Direito Penal, a Constituição faz somente estas ressalvas.
Em disposições que não se relacionam com a matéria criminal, a Constituição estabelece que aos militares é proibida a sindicalização e a greve (art. 142, § 3º, IV) e, enquanto estiver no serviço ativo, a filiação partidária (art. 142, § 3º, IV).
Ainda no que diz respeito ao tratamento especialmente conferido ao regime jurídicos dos militares, a Constituição da República determina que:
art. 142. ...
X - a lei disporá sobre o ingresso nas Forças Armadas, os limites de idade, a estabilidade e outras condições de transferência do militar para a inatividade, os direitos, os deveres, a remuneração, as prerrogativas e outras situações especiais dos militares, consideradas as peculiaridades de suas atividades, inclusive aquelas cumpridas por força de compromissos internacionais e de guerra.
Esta disposição é aplicável aos militares estaduais, por força do que dispõe o § 1º do art. 42 da Constituição, e não permite restringir qualquer dos direitos fundamentais dos militares em matéria penal ou processual penal.
Cabe notar que o estabelecimento de regras diferenciadas para a admissão de servidores não é uma exclusividade de militares, sendo constitucionalmente admitidas para outras categorias de servidores (art. 39, §3º).
No que diz respeito às garantias profissionais dos militares da União, a Constituição, no art. 142, § 3º, incisos VI e VII, garante que o oficial somente perderá o posto e a patente se for julgado indigno ou incompatível com o oficialato por decisão de Tribunal Militar de caráter permanente. Importa notar que, para os militares da União, a garantia (tratamento diferenciado) somente foi conferida aos oficiais e não aos praças.
No âmbito dos Estados, o art. 125, § 4º, da Constituição garante que somente o Tribunal decidirá sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças em ações judiciais (criminais). Em relação aos militares dos Estados, a garantia processual foi expressamente estendida aos praças.
O foro especial por prerrogativa de função também foi instituído para outros servidores públicos e se fundamenta na necessidade de, ao mesmo tempo, garantir o exercício das funções inerentes ao cargo público e a realização de um julgamento livre de interferências. Não se trata de garantia estabelecida em favor da pessoa que eventualmente ocupa o cargo e é acusada de um crime (LOPES JR, 2018, p. 283-284). Todas as pessoas, militares ou civis, continuam sendo iguais perante a lei.
É fácil perceber que estas disposições constitucionais especialmente direcionadas aos servidores militares não os torna pessoas desiguais em sua vinculação politica com o Estado brasileiro (cidadãos de 2ª categoria) ou os afasta de sua proteção. A Constituição expressamente garante a dignidade de todas as pessoas humanas, sem fazer qualquer distinção depreciativa em relação à pessoa dos militares.
O tratamento constitucional diferenciado que é dirigido aos militares pela Constituição constitui exceção que se fundamenta nas peculiaridades inerentes ao exercício da função. Como toda regra excepcional, deve ser racionalmente fundamentada e não admite interpretação extensiva. Exceção é exceção! Não pode se transformar as disposições excepcionais em motivos para construir uma regra geral – não escrita – que venha a impor um tratamento sempre desigual em desfavor dos militares em todos os demais aspectos de sua relação com o Estado. O tratamento diferenciado somente poderá se dar nos limites do que está previsto na Constituição.
Com base em uma suposta desigualdade natural entre civis e militares, entre os bens jurídicos protegidos pelo Código Penal comum e o Código Penal Militar, alguns doutrinadores e operadores da Justiça Militar sustentam tratamento sempre desfavorável aos militares. Os argumentos utilizados para esta interpretação se baseiam em um maior rigor das disposições do Código Penal Militar (o que não se confirma diante um exame superficial das penas cominadas), uma tutela penal vinculada essencialmente à proteção da hierarquia e da disciplina, bem como na índole especial do Código de Processo Penal Militar que, novamente estaria predisposta à realizar a tutela da hierarquia e da disciplina (ALVES-MARREIROS, 2020, p. 29-33 e 197-198; ALVES-MARREIROS, 2017; e VASQUES, 2018). Muito embora a alínea “a” do art. 3º, do Código de Processo Penal Militar determine que os casos omissos serão supridos com a legislação comum, sem prejuízo da índole do processo penal militar, os argumentos aprisionados pela obsessão da hierarquia e da disciplina não convencem.
Se, de fato, a Constituição da República trata o militar diferentemente no que diz respeito à possibilidade de aplicação da pena de morte e da prisão sem ordem escrita de autoridade judiciária, não se pode concluir pela instituição de um tratamento discriminatório que sempre o prejudique em todos os demais aspectos de sua relação jurídica com o Estado sancionador.
No que diz respeito aos servidores militares estaduais, a necessidade do tratamento isonômico em relação aos servidores civis se mostra ainda mais evidente em razão de integrarem um mesmo sistema de defesa social. Como deixa claro o art. 144 da Constituição da República, a Polícia Militar, o Corpo de Bombeiros Militar e a Polícia Civil são instituições públicas encarregadas de prestar serviços articulados de proteção ao direito fundamental do cidadão à segurança pública.
Em se tratando de combate à criminalidade, nos termos da planificação constitucional, as polícias militares e civis estaduais exercem atividades complementares. Formalmente, cabe à polícia militar realizar as atividades de policiamento preventivo (ostensivo) e a polícia civil as atividades investigativas de polícia judiciária (repressiva). Em regra, os policiais militares recebem as primeiras notícias sobre os fatos de interesse penal e, tomadas as medidas mais urgentes, repassam tais informações à polícia civil para o prosseguimento das providências a cargo do poder público.
A complementariedade das atividades que convergem para a realização dos mesmos objetivos de proteção do cidadão já demonstra a necessidade de tratamento isonômico em relação a todos os agentes públicos envolvidos. Em muitas situações concretas, as instituições encarregadas da defesa social atuam em conjunto e o militar estadual exerce atividades com policiais e outros servidores civis. No que diz respeito aos aspectos comuns da atividade de garantia do direito fundamental do cidadão à segurança pública, os agentes de todas as instituições devem receber o mesmo tratamento.
Os aspectos práticos desta premissa podem ser ressaltados na seguinte indagação relacionada ao tema em exame: se houvesse um policial civil atuando conjuntamente com um policial militar, no caso concreto, haveria razões para admitir o acordo de não persecução penal em benefício do policial civil e não permitir que o militar pudesse firmar o mesmo acordo? A condição de militar constitui causa idônea que possa legitimar uma resposta repressiva diferenciada do Poder Público em relação aos seus agentes de segurança pública? A resposta, certamente, é negativa.
Denílson Feitosa (2008, p. 246), tratando especificamente da exigência de representação para os crimes de lesão corporal leve e culposas na Justiça Militar, inicia sua reflexão indagando se “poderia a Lei nº 9.099/95 tratar diferentemente o réu do processo penal militar relativamente ao réu do processo penal comum?” Em seguida, estabelece a seguinte premissa: “do ponto de vista do princípio constitucional da igualdade, é necessário se determinar o elemento diferencial entre o réu do processo penal comum e o réu do processo penal militar que justifique o tratamento desigual entre eles.” Certamente, o fato de ser militar, por si só, não autoriza qualquer distinção de tratamento.
Não havendo elemento diferencial que, de maneira idônea, possa justificar o tratamento diferenciado conferido aos militares tal tratamento deve ser reconhecido como inconstitucional, por violar o princípio da isonomia.
4. Direito Penal Militar negocial
A crescente ampliação dos espaços para a atividade negocial na justiça penal brasileira desafia uma mudança em nossa cultura jurídica e sugere a necessidade de refundação dos pilares de nosso Processo Penal. Ao lado da perspectiva tradicional que promove a discussão judicial sobre elementos de prova e fundamenta a responsabilidade penal na verdade real que deve ser descoberta (TOURINHO FILHO, 1990, p. 37), ganham importância os procedimentos pré-processuais e processuais que permitem fundamentar a responsabilidade penal (ou mesmo a irresponsabilidade) em verdades acordadas pelas partes em atividade negocial (BRANDALISE, 2016, p. 236), sem a intervenção do juiz.
Com base no sistema garantista consolidado por Luigi Ferrajoli e especialmente nas criticas que o jurista italiano formulou aos procedimentos especiais que permitem acordos sobre a imposição de pena e sobre a utilização de procedimentos abreviados (FERRAJOLI, 1995, p. 746-752), na doutrina brasileira relevante há quem sustente a incompatibilidade da justiça penal negocial com a função garantista da jurisdição penal (LOPES JR, 2018, p. 787-789; BADARÓ, 2016, p. 87-94).
Segundo aponta Ferrajoli (1995, p. 747), os procedimentos da justiça penal negocial se amparam em argumentos teóricos que afirmam a sua coerência com um sistema acusatório e um processo que se estabelece entre partes, bem como no argumento prático de que somente com o emprego dos instrumentos negociais na maior parte dos casos será possível realizar efetivamente o processo contraditório nos demais.
Segundo Ferrajoli (1995, p. 748), o argumento pragmático que se fundamenta na maior celeridade na resolução de processos comprova a ocorrência do sacrifício das garantias individuais em muitos processos em benefício de sua observância em outros poucos. Considerando fundamentalmente a desigualdade de forças entre acusação e defesa, Ferrajoli posiciona-se firmemente contra os modelos de justiça negocial por transformarem a acusação em um instrumento de pressão, capaz de gerar autoacusações falsas, testemunhos caluniosos por conveniência, obstrucionismo ou prevaricações sobre a defesa, desigualdade de tratamento e insegurança. Nesse contexto, a jurisdição penal se torna um luxo reservado apenas a quem esteja disposto a enfrentar os seus custos e riscos. Para o autor, o processo penal é reduzido a um jogo de azar, no qual o imputado deve escolher entre aceitar uma condenação a uma pena reduzida ou enfrentar um processo ordinário que tanto pode ser concluído com a sua absolvição como com a sua condenação a uma pena muito mais grave.
Quanto aos argumentos teóricos, Ferrajoli (1995, p.747) denuncia a confusão que se estabeleceu entre o modelo teórico acusatório e as características concretas do processo acusatório estadunidense, que admite a discricionariedade na propositura da ação penal e o acordo entre as partes sobre a imposição de penas. Para o autor, tais características seriam resquícios do caráter originalmente privado e/ou popular da acusação, no qual a oportunidade da ação e do acordo com o imputado decorriam da liberdade de acusar. Nos sistemas em que a acusação é pública (como na Itália, nos Estados Unidos e no Brasil) não haveria razões que as justificassem.
No mesmo sentido, Aury Lopes Jr sustenta que o modelo de justiça negocial é incompatível com o sistema acusatório porque o Ministério Público não possuindo o poder punitivo não poderia negociar a pena. Conforme argumenta, o poder de punir é do estado-juiz (2018-A, p. 16-17). O argumento, no entanto, desconsidera que no Estado Democrático de Direito todo o poder (inclusive o punitivo) emana do povo. O estado-juiz é apenas o gestor dos poderes que lhe são delegados pelo povo (BUSATO, 2015, p. 19). E que o Poder Judiciário não é o único gestor da intervenção punitiva.
A critica sustenta que a negociação que se estabelece entre a acusação e a defesa afronta o juízo contraditório, que se caracteriza pela confrontação pública, em condições de igualdade, entre as partes e se concilia com as práticas persuasivas próprias às relações desiguais de um sistema inquisitório (FERRAJOLI, 1995, p. 748; LOPES JR., 2018, p. 788-789; VASCONCELLOS, 2018, p. 176-177 e 2018-A, p. 49-50).
O exagero da critica parece evidente. O acordo de não persecução penal, no sistema brasileiro, deve ser homologado judicialmente e o juiz faz o controle de legalidade do ajuste. Não se pode presumir a má-fe dos agentes estatais encarregados de realizar a persecução penal, nem que os acordos são instrumentos que permitem praticar covardias contra pessoas indefesas. Os atores processuais que se envolvem nas relações negociais serão os mesmos que irão atuar durante todo o processo de conhecimento e em sua conclusão. Se tais atores agem com má-fé e desvios na fase negocial, porque atuariam de boa-fé e em conformidade com a lei na fase contenciosa? As premissas que sustentam as criticas não parecem devidamente sólidas.
O que se pode constatar no debate travado sobre a justiça penal negocial é uma polarização que se estabeleceu entre duas posições ideologicamente opostas (PEREIRA, 2016, p. 53-55).
A primeira entende o sistema judiciário penal e o processo penal unicamente como espaço para a garantia da liberdade dos investigados/acusados, rejeitando qualquer possibilidade de ponderação entre tal objetivo e as necessidades de eficiência da repressão aos crimes (HASSEMER, 2007, p. 76-79; 88-98; 114-119). Em outras palavras, não admite qualquer ponderação entre as razões de garantia da liberdade individual e as de eficiência do sistema punitivo (FERRAJOLI, 1995, p.746-752 e BADARÓ, 2016, p. 87-94). Nesta perspectiva, a tarefa de combater o crime é exclusivamente das instâncias policiais (HASSEMER, 2007, p. 155-186). E o Poder Judiciário deve se isolar em uma bolha distante dos problemas reais de aplicação do sistema normativo.
A segunda, por outro lado, considera a existência de uma tensão que desafia encontrar pontos de equilíbrio entre as necessidades de eficiência do sistema processual penal e as garantias da liberdade individual (ROXIN; ARZT e TIEDMANN, 2007, p.158-161). Nesta perspectiva, é possível discutir até que ponto o Estado pode limitar a satisfação dos interesses individuais de garantia da liberdade em benefício da persecução penal (PEREIRA, 2016, p. 55).
Como a República Federativa do Brasil constitui um Estado Democrático de Direito (art. 1º da CR/88) e não um Estado de Direito Liberal, é forçoso concluir que até mesmo os direitos fundamentais relacionados à garantia da liberdade individual possuem limites (SAMPAIO, 2013, p. 689-699). Conforme o princípio constitucional da razoabilidade ou da proporcionalidade (ALEXY, 2008, p. 132; 2008-A, p. 116-117; 2014, p. 6-7 e 2014-A, p.149; BARROSO, 2010, p. 260-261; CRUZ, 2004, p. 238-244), é necessário fazer uma ponderação (BARROSO, 2010, p. 334-339) entre as garantias que protegem a liberdade individual (vedação do excesso) e a efetividade da tutela penal (vedação da tutela ineficiente). Em uma perspectiva mais atualizada dos direitos fundamentais, deve-se fazer a ponderação entre uma dimensão coletiva dos direitos fundamentais e uma dimensão individual dos direitos fundamentais (OLIVEIRA, 2018, p. 40-41).
Importa notar que o Direito Penal do Estado democrático situa em um mesmo patamar de importância o ideal da mínima intervenção punitiva, com as garantias individuais que lhe são inerentes, e a efetiva responsabilização daqueles que realizam comportamentos ofensivos aos bens jurídicos que demandam a tutela penal (COPETTI, 2000, p. 104).
As diversas perspectivas negociais, que tomam caminhos diversos e se mostram incapazes de formar um sistema coeso (ROSA, 2018, p. 101), devem submeter-se igualmente aos pressupostos do Estado Democrático de Direito. Os institutos negociais somente adquirem legitimidade quando puderem compatibilizar os interesses de garantia da liberdade do investigado/acusado com a efetividade da tutela penal. Em especial, os institutos negociais devem garantir ao indiciado/acusado o pleno acesso às informações relativas à sua situação jurídica e ainda preservar a sua liberdade para negociar. Nesse contexto, o negócio jurídico processual que pode extinguir a punibilidade do militar deve ser entendido como um direito de defesa.
Na doutrina penal militar, entretanto, pode-se constatar que a preocupação é outra. A rejeição aos institutos negociais se fundamentam em uma suposta índole mais rigorosa do Direito Penal Militar e na necessidade de controlar a tropa mediante a força coercitiva da ameaça de privação da liberdade. Não se verifica a mesma preocupação com os direitos fundamentais do indiciado ou acusado que se constata nos debates sobre a aplicação dos institutos negociais no âmbito da Justiça comum. Esta distinção, por si só, já demonstra a existência de um descompasso preocupante que coloca a doutrima penal militar alguns passos atrás dos paradigmas do Estado Democrático de Direito. E, no Brasil, somente se pode pensar em um Direito Penal Militar absolutamente conciliado com o Estado Democrático de Direito.
3. Acordo de não persecução penal
No Brasil, o acordo de não persecução penal foi inicialmente previsto no art. 18 da Resolução nº 181, de 07 de agosto de 2017, posteriormente alterada pela Resolução nº 183, de 24 de janeiro de 2018, ambas do Conselho Nacional do Ministério Público. Pode-se constatar que a disposição regulamentar do Conselho foi editada sem qualquer amparo legal e afrontou diretamente o princípio da obrigatoriedade da ação penal condenatória prevista no art. 100, § 1º, do Código Penal, no art. 24 do Código de Processo Penal e no art. 30 do Código de Processo Penal Militar.
A Lei nº 13.964/19, no entanto, posteriormente introduziu o instituto do acordo de não persecução penal no ordenamento jurídico brasileiro, no art. 28-A do Código de Processo Penal, repetindo, quase que literalmente, as disposições sobre o instituto constantes da Resolução nº 181 do Conselho Nacional do Ministério Público.
O acordo de não persecução penal apresenta mais requisitos do que o plea agreement do Direito norte-americano. Segundo o art. 28-A do CPP, o acordo de não persecução penal somente poderá ser firmado quando estiverem satisfeitos os seguintes requisitos: 1) o investigado houver confessado formal e circunstancialmente a prática de infração penal; 2) a infração penal não tiver sido cometida com violência ou grave ameaça; e 3) à infração penal seja cominada pena mínima inferior a 04 (quatro) anos.
Mesmo satisfeitos tais requisitos, não se admitirá o acordo quando for cabível a transação penal; o investigado for reincidente; existirem elementos indicativos de conduta habitual, reiterada ou profissional (salvo no caso de ofensas insignificantes); ter o investigado sido beneficiado por acordo de não persecução, transação ou suspensão condicional do processo nos 5 anos anteriores à infração; nos crimes praticados no âmbito de violência doméstica ou familiar, bem como nos crimes praticados contra mulher por razões de sexo feminino.
O acordo de não persecução penal deve ser firmado por escrito pelo membro do Ministério Público, o investigado e seu defensor (art. 28-A, § 3º). Para produzir os seus efeitos o acordo, deve ser homologado judicialmente. A análise do juiz restringe-se à verificação da voluntariedade das partes e da legalidade do acordo firmado (art. 28-A, § 4º). Homologado o acordo, a persecução penal não se inicia em juízo, devendo o investigado cumprir as condições estabelecidas, dentre as quais se a reparação dos danos causados à vitima (art. 28-A, I). Cumpridas todas as condições, o juiz competente decretará extinta a punibilidade do investigado (art. 28-A, § 3º).
Nestes termos, o acordo de não persecução penal é um negócio jurídico que consubstancia a política criminal do Estado Brasileiro, é promovida pelo titular da ação penal publica (CABRAL, 2020, p. 84) e permite a extinção da punibilidade do investigado.
No que diz respeito à possibilidade de realizar o acordo em razão da prática de crimes militares, cabe observar que a Resolução nº 183 do CNMP inseriu o parágrafo 12 no art. 18 da Resolução nº 181 que impede a aplicação do acordo de não persecução penal aos crimes cometidos que afetem a hierarquia e a disciplina. Tal impedimento, contudo, não foi reproduzido no art. 28-A do Código de Processo Penal.
O exame sobre a possibilidade de aplicar o acordo de não persecução na Justiça Militar deve levar em conta a experiência com a aplicação da Lei nº 9.099/95 no âmbito da justiça especializada. Antes da entrada em vigor do o art. 90-A da referida Lei, o Supremo Tribunal Federal, no RHC 74606, decidiu que os novos institutos despenalizadores tinham aplicação na Justiça Militar, posto que “não poderia a pretensão punitiva do Estado ser regida por norma processual mais desfavorável ao réu ... simplesmente porque o mesmo tipo penal está previsto nesta ou naquela lei substantiva”.
O princípio da isonomia orientou a decisão que constituiu o paradigma para a possibilidade de aplicação dos institutos negociais da Lei nº 9.099/95 no âmbito da Justiça Militar, mesmo não havendo previsão no Código de Processo Penal Militar. Seus fundamentos continuam válidos até os dias atuais, apesar da entrada em vigor do art. 90-A (que restringe indevidamente o alcançe do disposto no art. 98, I, da Constituição da República), e se aplicam ao acordo de não persecução penal. Não há fundamento racional para negar o benefício ao policial militar e permitir ao policial civil que tenha cometido o crime em concurso de pessoas, por exemplo. Atendidos os requisitos específicos, os dois servidores integrantes do mesmo sistema de defesa social devem ser beneficiados com o instituto, por força da garantia constitucional da isonomia.
O fato do Código de Processo Penal Militar não prever o instituto não constitui obstáculo à sua aplicação no âmbito da justiça especializada. Muitos são os institutos e determinações processuais previstos unicamente na legislação comum que também são aplicados na Justiça Militar. Neste sentido, cabe lembrar novamente a decisão do Supremo determinando realizar o interrogatório do acusado ao final da instrução. O Código de Processo Penal Militar não prevê o acordo, seja para permitir ou para proibir a sua aplicação. Nos casos de omissão do Código de Processo Penal Militar, aplica-se o seu art. 3º que permite a incidência dos institutos previstos na legislação comum.
Não havendo proibição para a aplicação do acordo na Justiça Militar e sendo este um instituto de direito material mais favorável ao militar, posto que permite a extinção da punibilidade com o cumprimento de penas/medidas menos gravosas, deve-se concluir pela possibilidade de aplicação do instituto. Como sustenta Rodrigo Leite Cabral, “desde um ponto de vista normativo, é plenamente aplicável o acordo de não persecução penal à Justiça Militar” (2020, p. 206).
Novamente, vale ressaltar, o acordo de não persecução penal não ofende a índole da legislação militar. A prova contundente da compatibilidade do novo instituto com a índole da legislação repressiva militar é a aplicação, por décadas, do plea agreement na Justiça Militar norte-americana (GALVÃO, 2020).
4. Reparação dos danos causados à vitima
Toda vitima de crime possui direito à reparação dos danos que lhe foram causados, nos termos do art. 927 do Código Civil. A condenação pela prática de crime militar torna certa a obrigação de indenizar os danos sofridos pela vitima, conforme previsão do art. 109, inciso I, do Código Penal Militar.
Como estímulo para a reparação dos danos, o art. 70, inciso III, alínea b, do Código Penal Militar prevê como circunstância atenuante ter o agente, antes do julgamento, reparado o dano. Cabe observar que o estatuto repressivo militar não contempla o arrependimento posterior, previsto no art. 16 do Código Penal comum. Nos termos de seu art. 86, o Código Penal Militar ainda prevê que a suspensão condicional da pena deve ser revogada se, no curso do prazo, o beneficiário não efetua, sem motivo justificado, a reparação do dano. Em todas estas situações, o estimulo para a reparação aos danos sofridos pela vitima pode esperar até o julgamento de mérito da pretensão punitiva.
Como se pode facilmente perceber, tais previsões não constituem estímulos para que os danos sofridos pela vitima tenham célere reparação/indenização. Nesse contexto, a situação vitima continua sem receber a devida atenção.
O acordo de não persecução penal, no entanto, é instituto que pode mudar este cenário. Conforme o inciso I do art. 28-A do Código de Processo Penal, no acordo podem ser ajustadas condições para que o investigado repare os danos causados pelo crime à vitima. Certamente, a previsão para a reparação dos danos também determina o ajuste de condições para a indenização nos casos em que os danos não puderem ser estritamente reparados.
O momento no qual ocorre o ajuste e a maior possibilidade de seu efetivo cumprimento atende melhor aos interesses de plena e célere restauração dos danos sofridos pela vitima, constituindo mais uma razão para que a opção político-criminal instituída expressamente para a justiça comum também seja aplicada na Justiça Militar. O acordo de não persecução penal constitui insrumento que, ao mesmo tempo, permite a extinção da punibilidade do suposto autor do fato e promove a reparação/indenização dos danos causados à vitima.
5. Conclusão
Pelas razões expostas, pode-se chegar à conclusão de que o acordo de não persecução penal, previsto no art. 28-A do Código de Processo Penal comum, possui plena aplicação na Justiça Militar.
Atendidos os seus requisitos específicos, o instituto negocial constitui um dos direitos de defesa que integra o patrimônio de todo e qualquer réu no sistema processual brasileiro. Não há qualquer razão que possa justificar uma restrição ao exercício do referido direito por parte dos réus militares.
Também pode-se concluir que o acordo de não persecução penal constitui instrumento eficaz para uma celere reparação/indenização dos danos causados à vitima pelo crime militar e, por isso, sua aplicação também atende ao interesse social de restauração dos danos decorrentes de crimes militares.
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Fernando Galvão é Professor Titular de Direito Penal da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais e Desembargador Civil do Tribunal de Justiça Militar de Minas Gerais.
Trabalho apresentado e publicado nos Anais do VIII Congresso Internacional De Direitos Humanos de Coimbra: uma visão
Transdisciplinar, 2023 – 7 volume.
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