1. Introdução
Atendendo a pedido da Comissão Permanente de Combate à Violência Doméstica (Copevid), instituída pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos[1], o Ministério Público do Estado de Goiás desenvolveu a campanha Toque de Amiga, que visa alertar e informar as pessoas sobre o crime de violência psicológica contra a mulher.[2] Dada a relevância do tema, diversas instituições estão aderindo formalmente à campanha, que também se apresenta importante para a Justiça Militar.
Em especial para a atuação das polícias militares, que fazem o primeiro atendimento às vitimas de violência, se apresenta importante identificar a ocorrência de um crime de violência psicológica contra a mulher.
O crime em exame também pode ser realizado por um militar e caracterizar um crime militar. Considerando a alteração produzida pela Lei n° 13.491/2017 no art. 9° do Código Penal Militar, hoje é possível caracterizar o crime militar de violência psicológica contra a mulher.
Este breve artigo pretende trazer algumas informações relevantes sobre o referido crime.
2. Previsão legal e origem da incriminação
O crime de violência psicológica contra a mulher encontra previsão no art. 147-B do Código Penal, cuja descrição típica apresenta a seguinte redação:
Art. 147-B. Causar dano emocional à mulher que a prejudique e perturbe seu pleno desenvolvimento ou que vise a degradar ou a controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, chantagem, ridicularização, limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que cause prejuízo à sua saúde psicológica e autodeterminação:
Pena - reclusão, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa, se a conduta não constitui crime mais grave.
O crime em exame foi incluído no Código Penal pela Lei nº 14.188, de 28 de julho de 2021, que instituiu o Programa de Cooperação Sinal Vermelho contra a Violência Doméstica como uma das medidas de enfrentamento da violência doméstica e familiar contra a mulher. A edição da referida lei resultou da Campanha Sinal Vermelho promovida pelo grupo de trabalho instituído pelo Conselho Nacional de Justiça para elaborar estudos e ações emergenciais voltados a ajudar as vítimas de violência doméstica durante a fase do isolamento social causado pela pandemia do Covid-19. O grupo foi criado após a confirmação do aumento dos casos registrados contra a mulher durante a quarentena, que foi determinada em vários países do mundo como forma de evitar a transmissão do novo coronavírus.[3]
A campanha Sinal Vermelho teve âmbito nacional e, inicialmente, divulgou a ideia de que a mulher poderia pedir ajuda em farmácias, órgãos públicos e agências bancárias com um sinal vermelho desenhado na palma da mão. Conhecendo o significado do sinal, os atendentes imediatamente deveriam acionar as autoridades policiais.
Para a definição da conduta proibida, o legislador se inspirou no inciso II do art. 7º da Lei n° 11.340, de 7 de agosto de 2006, conhecida como Lei Maria da Penha, segundo o qual:
Art. 7º São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras:
...
II - a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, violação de sua intimidade, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação;
A cominação de pena, no entanto, não se apresenta proporcional à gravidade da ofensa produzida contra a mulher. Nesse aspecto, cabe observar que o art. 1º da Lei nº 9.455/97 define como tortura condutas que, mediante ameaça, causam sofrimento mental e para tais condutas comina a pena de reclusão de dois a oito anos. O contexto que permite a caracterização do crime de tortura se assemelha ao contexto de realização do crime em exame. O crime de violência psicológica contra a mulher, por sua cominação de pena, é considerado de pequeno potencial ofensivo.
3. Objetividade jurídica
O crime de violência psicológica contra a mulher está inserido na seção que trata dos crimes contra a liberdade pessoal e afeta a liberdade psíquica da mulher, que a permite determinar a própria vontade, pensamentos, crenças e comportamentos.
O tipo incriminador expressamente exige que a conduta proibida cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação da vitima, que constituem pressupostos para o exercício da liberdade pessoal. Como bem observa Beatriz Camargo, a proteção da integridade psíquica da vitima não constitui o objeto central da tutela penal, mas um meio de resguardar a sua liberdade individual.[4] A liberdade psíquica da vitima está intimamente ligada à tranquilidade interna que lhe permite fazer livremente as suas escolhas pessoais.
A ofensa que se dirige aos aspectos psíquicos do sujeito passivo também pode produzir reflexos em sua liberdade física, na medida em que o sujeito ativo efetivamente controle as suas ações e comportamentos.
4. Sujeito ativo e sujeito passivo
Em relação ao sujeito ativo, o crime em exame é comum, sendo que o tipo incriminador não exige que o sujeito ativo tenha qualquer característica especial.
O sujeito passivo, no entanto, somente pode ser mulher. Tratando-se de uma exigência típica expressa que a vitima seja mulher, não é possível caracterizar-se o crime quando a vitima da violência for uma criança ou adolescente. Nestes casos, incidem as incriminações previstas na Lei nº 8.069/90.
Também não pode ser vitima do crime em exame o homem, ainda que assuma socialmente a identidade ou nome social feminino. Neste aspecto, é possível perceber que a previsão incriminadora expressa uma tutela penal insuficiente. Não há razões para que a proteção da norma incriminadora não seja dirigida a qualquer pessoa.[5] A previsão restritiva do crime de violência psicológica contra mulher não observou a tendência que se verifica nos ajustes que vem sendo realizados no Código Penal ao longo dos últimos anos. A Lei nº 12.015, de 2009, por exemplo, alterou a previsão para o crime de estupro (art. 213 do CP) de modo que o crime que antes somente poderia ser praticado contra mulher passasse a proibir ofensas dirigidas contra qualquer pessoa (alguém). Todas as pessoas são dignas e merecedoras da tutela penal contra a violência psicológica, não havendo justificativa razoável para a restrição da tutela.
Apesar da instituição do crime de violência psicológica contra a mulher ter sido influenciada pela Campanha Sinal Vermelho que visou o enfrentamento da violência doméstica e familiar contra a mulher, o crime pode ser realizado em outros ambientes. Com certeza, também pode ser realizado em ambientes de trabalho militar.
Ordinariamente, o crime é praticado por que já mantém alguma relação familiar, social ou profissional com a vitima. No contexto familiar, como exemplos, o crime pode ser praticado pelos pais contra a filha, pelo marido contra a mulher, pelo filho contra a mãe ou por uma irmã contra a outra. No ambiente de relacionamentos sociais, o crime pode ser praticado por uma colega de natação contra outra, por um aluno contra outra ou por um vizinho de um condômino residencial contra outra vizinha. No ambiente de relacionamentos profissionais, o crime pode ser praticado por um chefe contra uma subordinada, uma colega de trabalho contra outra e, até mesmo, por um militar subordinado contra a sua superior.
Contudo, excepcionalmente, o crime também pode ser praticado por pessoa que não mantinha qualquer relação anterior com a vitima e pretenda ofender a sua liberdade pessoal. O tipo incriminador não faz qualquer restrição quanto à existência de relacionamento anterior entre o agressor e a vitima.
5. Comportamento proibido
O tipo incriminador apresenta certa complexidade na descrição da conduta proibida, o que nos exige cuidado em sua interpretação. O núcleo do tipo em exame é constituído pelo verbo causar que está relacionado ao dano emocional que é sofrido pela vitima. No contexto da incriminação em exame, causar significa produzir, provocar, gerar o dano emocional na mulher.
A previsão típica descreve a produção do dano emocional em três contextos diferentes nos quais se pode identificar modalidades distintas para o cometimento do crime. Neste sentido, o crime pode ser realizado por qualquer uma das seguintes modalidades:
1) Causar dano emocional à mulher que a prejudique e perturbe seu pleno desenvolvimento;
2) Causar dano emocional à mulher que vise a degradar suas ações, comportamentos, crenças e decisões;
3) Causar dano emocional à mulher que vise a controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões.
Do contexto da descrição do comportamento proibido pode-se extrair a conclusão de que em todas as suas modalidades o crime afeta a saúde psicológica e autodeterminação da vitima, como pressuposto de sua liberdade psíquica.
Ao indicar a necessidade de ofensa à saúde psicológica da vitima, o crime se alinha com a noção de saúde adotada pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Para a Organização, saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social, não sendo meramente a ausência de doenças. O conceito ampliado de saúde está no preâmbulo da Constituição da Organização Mundial de Saúde, firmado em Nova York, em 22 de julho de 1946, por ocasião da Conferência Internacional de Saúde. Os atos foram ratificados no Brasil pelo Decreto nº 26.042, de 17 de dezembro de 1948.
Ao prever ofensa à autodeterminação, o tipo incriminador deixa claro que o crime de violência psicológica contra a mulher ofende à liberdade pessoal da vitima. A autodeterminação é o direito fundamental que todo ser humano possui de fazer as próprias escolhas, de orientar seus comportamentos, pensamentos, crenças e decisões com autonomia e livre-arbítrio.
Na primeira de suas modalidades, o crime prevê a produção de três resultados naturalísticos em desfavor da vitima: o dano emocional, o prejuízo à saúde emocional e a perturbação do pleno desenvolvimento emocional. É fácil constatar que a construção do preceito incriminador não foi adequada. O dano emocional já é um prejuízo à saúde emocional que afeta as funções psíquicas ligadas à emoção, como a autoestima, a atenção, a memória e o raciocínio, e pode incapacitar a vitima para o exercício de suas relações familiares, sociais ou profissionais. Assim, não se apresenta necessário mencionar o prejuízo à saúde da vitima. Bastaria que o tipo incriminador mencionasse o dano emocional.
Nesta modalidade, o tipo incriminador ainda exige que o dano emocional, além de causar prejuízo à saúde emocional da vitima, cause perturbação do pleno desenvolvimento de suas potencialidades. As potencialidades a que se refere o tipo dizem respeito às características emocionais da vitima que permitem a realização plena de seus objetivos pessoais, sociais e profissionais. Para a caracterização do crime não é necessário que o desenvolvimento das potencialidades da vitima reste totalmente impedido pelo dano emocional, basta que ocorra uma perturbação ao seu normal desenvolvimento.
Na segunda modalidade, a conduta deve causar dano emocional à mulher com a intenção de degradar suas ações, comportamentos, crenças e decisões. Para a caracterização do crime nesta modalidade basta que a conduta, orientada pela intenção especificamente estabelecida no tipo, produza o dano emocional. A degradação visada com a produção do dano significa uma restrição do âmbito de liberdade da vitima, de modo a prejudicar a livre realização de suas ações e comportamentos, a formação e manutenção de suas convicções, bem como o seu processo de tomada de decisões. Também na modalidade ora em exame não se mostra adequado mencionar ações e comportamentos. A ação é uma espécie de comportamento, de modo que bastaria mencionar o prejuízo à liberdade de realizar o próprio comportamento.
Na terceira modalidade, a conduta proibida deve causar dano emocional à mulher com a intenção de controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões. Como ocorre na modalidade anteriormente mencionada, para a caracterização do crime nesta modalidade basta que a conduta, orientada pela intenção especificamente estabelecida no tipo, produza o dano emocional. O controle visado com a produção do dano significa o domínio, a ingerência ou a direção que o sujeito ativo pretende estabelecer sobre as ações, comportamentos, crenças e decisões da vitima. Para a caracterização do crime na modalidade ora examinada não é necessário que o sujeito ativo tenha a finalidade de controlar totalmente as ações, comportamentos, crenças e decisões da vitima. Basta que, com o dano emocional produzido, o sujeito vise estabelecer um controle parcial sobre os aspectos da liberdade pessoal da vitima. E, certamente, a caracterização do crime não depende do êxito em estabelecer o controle sobre a vitima. Basta a produção do dano emocional.
O tipo estabelece vinculação para a execução do crime, de modo que somente será possível caracterizar-se a tipicidade se o dano emocional for realizado mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, chantagem, ridicularização, limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que cause prejuízo à saúde psicológica e autodeterminação da vitima.
Na redação do tipo incriminador, o legislador usou a técnica da integração analógica que permite seja o seu preceito completado (integrado) por elementos não descritos especificamente, mas que se enquadram na fórmula geral expressamente descrita. No caso, a execução do crime está vinculada à previsão de qualquer meio que cause prejuízo à saúde psicológica e autodeterminação da vitima. O tipo menciona qualquer outro meio porque anteriormente indicou alguns meios que causam prejuízo à saúde psicológica e autodeterminação da vitima. E os exemplos apresentados pelo tipo são a ameaça, o constrangimento, a humilhação, a manipulação, o isolamento, a chantagem, a ridicularização e a limitação do direito de ir e vir da vitima.
Os dois primeiros exemplos de meios de execução do crime de violência psicológica contra a mulher constituem crimes subsidiários. Realizando o crime mediante constrangimento e ameaça, os crimes previstos nos arts. 146 e 147 do Código Penal devem ser absorvidos pelo crime de violência psicológica contra a mulher, como indica o princípio da consunção.
A humilhação que se presta como meio de execução da violência psicológica contra a mulher é o rebaixamento moral, a diminuição de valor que coloca a vitima em posição inferior. A humilhação pode ser realizada por diferentes formas, como por meio de xingamentos e da rejeição desrespeitosa aos posicionamentos, manifestações e condutas da vitima. Uma expressão bastante comum da violência psicológica humilhante contra a mulher é a que se realiza por meio da privação de recursos financeiros. A mulher que não possui recursos econômicos para se manter e precisa, a todo momento, pedir dinheiro ao sujeito ativo do crime se encontra em posição humilhante. No ambiente militar, pode-se citar o exemplo da imposição de autorização do superior para cada uma das ações rotineiras de trabalho.
A manipulação também pode ser utilizada como meio de execução do crime em exame. No contexto da incriminação, deve-se entender por manipulação a interferência que o sujeito ativo do crime exerce sobre as emoções da vitima. Trata-se da manipulação emocional que estimula emoções prejudiciais à saúde psicológica e autodeterminação da vitima. Nesta perspectiva, a manipulação promove a desestabilização emocional da vitima para produzir o dano emocional e os desdobramentos previstos no tipo incriminador. A critica exagerada, a reprovação explicita ao trabalho produzido pela vítima pode constituir forma de manipulação no ambiente militar.
A violência psicológica contra a mulher também pode ser realizada por meio do isolamento social imposto à vitima. Nesse caso, o sujeito ativo impede que a vitima tenha contatos com seus familiares, amigos ou com outras pessoas que interagem no ambiente social. Hoje concordamos com a afirmação de Aristóteles no sentido de que o homem é um animal social e um animal para o qual a convivência é natural.[6] Todos nós precisamos pertencer a uma coletividade, precisamos nos relacionar com outros serem humanos, inclusive no ambiente de trabalho. No contexto das instituições militares, o crime pode ser realizado com o isolamento institucional que impede a vitima de sentir-se parte integrante da instituição militar. O isolamento social ou institucional são situações que ferem a nossa natureza e nos causa sofrimento psicológico. Na forma mais comum de violência por isolamento o sujeito impede a vitima de ter contato com os seus familiares, amigos e demais colegas de trabalho. Em outros casos, o sujeito impede que a vitima trabalhe ou estude e, assim, não tenha contato com outras pessoas. É comum ocorrer do sujeito utilizar o pretexto de estar protegendo a própria vitima. No contexto de relacionamento de casal, pode o sujeito ativo do crime utilizar a narrativa da proteção ao relacionamento, disfarçando a violência praticada contra a vitima afirmando: “eu confio em você, mas não confio nos outros”.
Vale observar que nos casos de alienação parental, a mãe pode ser indevidamente privada do contato pessoal com os seus filhos. Em situações extremas, de prolongado afastamento ou de especial necessidade de acompanhamento da criança, é possível que a mãe sofra o dano emocional que permite a caracterização do crime em exame.[7] Como o tipo incriminador indica expressamente o isolamento como meio apto a causar o dano emocional, não se pode afastar aprioristicamente a caracterização do crime quando o ocorrer isolamento entre pessoas determinadas. No entanto, a alienação parental deve constituir meio apto para, no caso concreto, produzir dano emocional à vitima.
A chantagem também pode constituir meio de execução da violência psicológica contra a mulher. No contexto da incriminação, a chantagem a que se refere o tipo é a chantagem emocional. Por chantagem emocional deve-se entender a manipulação psicológica por meio da qual o sujeito pretende levar a vitima a satisfazer os seus desejos induzindo sentimentos de culpa ou remorso pela possibilidade da ocorrência de um mal grave. Algumas estratégias de chantagem emocional são muito conhecidas. Na estratégia da autopunição, o sujeito ameaça produzir um mal contra si caso o seu desejo não seja atendido pela vitima. A ameaça de autoextermínio se a mulher romper o relacionamento amoroso constitui um exemplo típico da estratégia. A chantagem também pode utilizar de ameaça de produzir um mal à pessoa da vitima, como no exemplo em que o sujeito ameaça separar-se da vitima caso realize determinada conduta. Com a estratégia da vitimização, o sujeito utiliza os próprios sofrimentos para manipular os sentimentos da vitima. O exemplo em que o sujeito conclama a vitima para não sair de casa porque encontra-se doente e passará muito mal se ficar sozinho é típico da estratégia de vitimização. Na estratégia da responsabilização da vitima pelo próprio comportamento, a narrativa do sujeito aponta na pessoa da vitima a causa de todos os problemas. O exemplo em que o sujeito justifica a sua agressividade e violência em suposta provocação da vitima expressa bem esta estratégia. No cenário construído pela narrativa, a culpa pela conduta violenta do agressor é atribuída a vitima que tem a sua liberdade pessoal limitada pela possibilidade da ocorrência de novas violências. Em qualquer dos tipos de chantagem emocional, o sujeito induz sentimentos de culpa ou de remorso na vitima para constrangê-la a satisfazer os seus desejos.
A violência psicológica contra a mulher também pode ocorrer por meio de ridicularização da vitima. Ridicularizar é fazer com que a vitima se apresente publicamente em condição ridícula, ou seja, que seja merecedora de risos, escárnio ou zombaria. Ao sentir-se alvo da zombaria, a pessoa é diminuída em sua autoestima e sofre por ser o motivo do desrespeito alheio. Para evitar a situação vexatória, a vitima sacrifica a sua liberdade.
Conforme o último exemplo utilizado na previsão típica, o crime em exame também pode ser realizado por meio da limitação do direito de ir e vir da vitima, o que implica em violação de seu direito à liberdade de locomoção. A limitação do direito de ir e vir da vitima não se confunde com a privação da liberdade, que caracteriza o crime de sequestro e cárcere privado descrito no art. 148 do Código Penal. A limitação constitui uma ofensa parcial ao direito de ir e vir. A privação, por sua vez, ofende integralmente o direito de ir e vir. Como os meios de execução do crime indicados constituem meros exemplos de ofensas à saúde psicológica e autodeterminação da vitima, o crime também pode ser praticado por limitação ao direito da vitima de ficar em determinado local. Em determinados contextos, a limitação à liberdade de locomoção da vitima é capaz de produzir dano emocional que prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento da mulher ou que instrumentalize a pretensão de degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões. Somente quando a limitação for idônea a produzir o dano emocional será possível caracterizar o meio de execução em exame.
Vale ressaltar que, como a redação típica usou a técnica da integração analógica, a violência psicológica contra a mulher pode ser realizada por meio de outras formas não especificadas expressamente no tipo incriminador.
A violência psicológica contra a mulher que caracteriza o crime em exame, ordinariamente, se expressa por um conjunto complexo de ações abusivas e reiteradas que se inserem em um contexto de dominação.[8] O sujeito ativo da violência psicológica normalmente utiliza de várias formas de execução do crime combinadas, de modo continuado, para que possam causar os danos psicológicos pretendidos. Por exemplo, o sujeito pode impedir que a mulher estude e/ou trabalhe e a submeta à condição humilhante de ter que pedir dinheiro a todo momento para o custeio de suas necessidades mais básicas. Certamente, a eventual necessidade de pedir dinheiro ao marido não é meio idôneo a causar dano psicológico à mulher. A caracterização do crime desafia identificar o contexto concreto de submissão da mulher que foi colocada em posição inferior e, por isso, precisou pedir dinheiro ao marido.
No entanto, o crime em exame também pode ser realizado em um único contexto fático no qual o sujeito utiliza meio idôneo a causar o dano emocional que venha a ofender à liberdade pessoal da vitima. Veja-se o exemplo no qual, em determinado dia, a mulher é impedida de sair de casa por um marido extremamente violento, que destrói objetos no interior do lar conjugal e a ameaça com uma arma de fogo. O trauma advindo dessa única experiência violenta pode causar o dano emocional que caracteriza o crime em exame e faça com que a vitima passe a ter medo de exercer a sua liberdade pessoal. A situação não é rara e também se apresenta em muitos casos de crimes violentos, com agressões físicas e privações de liberdade da vitima. O estado de estresse pós-traumático (TEPT) encontra previsão na Classificação Internacional de Doenças – CID10, sob o código F43.1, e pode ser consequência direta de grave estresse agudo produzido em um único evento na vida da vitima. A produção do dano emocional, mesmo neste caso, deve estar inserida em um contexto de ofensa à liberdade pessoal da vitima. Desta forma, o dano emocional produzido em evento único deve ser idôneo a atingir a autodeterminação da vitima que, por exemplo, não se encontra livre para escolher realizar determinada atividade fora de casa.
Fernando Galvão é Desembargador Civil do Tribunal de Justiça Militar do Estado de Minas Gerais e Professor Titular de Direito Penal da Faculdade de Direito da UFMG.
NOTAS
[1] BRASIL. Comissão Permanente de Combate à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher – COPEVID. Disponível em: https://www.gov.br/mdh/pt-br/navegue-por-temas/politicas-para-mulheres/arquivo/assuntos/violencia/lei-maria-da-penha/comissao-permanente-de-combate-a-violencia-domestica-e-familiar-contra-a-mulher-copevid. Acesso em 02 de agosto de 2022.
[2] MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE GOIÁS. Disponível em: <https://mpgo.mp.br/portal/noticia/campanha-concebida-pelo-mpgo-a-pedido-da-copevid-busca-alertar-mulheres-sobre-o-crime-de-violencia-psicologica>. Acesso em 02 de agosto de 2022.
[3] BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Campanha sinal vermelho, disponível em: <https://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/violencia-contra-a-mulher/campanha-sinal-vermelho/>. Acesso em 02 de agosto de 2022.
[4] CAMARGO, Beatriz Corrêa. Violência psicológica contra a mulher: considerações necessárias sobre o crime do art. 147-B do Código Penal, p. 07.
[5] CAMARGO, Beatriz Corrêa. Violência psicológica contra a mulher: considerações necessárias sobre o crime do art. 147-B do Código Penal. In Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCRIM, ano 29, nº 347, p. 09.
[6] Aristóteles. Ética a Nicômaco. 2ª ed. Tradução de Mário da Gama Kury. Brasília: Ed. UnB, 1992, p. 185.
[7] Em sentido contrário, sustentando a insignificância penal da alienação parental: CAMARGO, Beatriz Corrêa. Violência psicológica contra a mulher: considerações necessárias sobre o crime do art. 147-B do Código Penal. In Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCRIM, ano 29, nº 347, p. 07 e 08.
[8] CAMARGO, Beatriz Corrêa. Violência psicológica contra a mulher: considerações necessárias sobre o crime do art. 147-B do Código Penal. In Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCRIM, ano 29, nº 347, p. 08.
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