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Adriano Alves-Marreiros

O falso e antidemocrático “Princípio” do não retrocesso”

Publiquei no Tribuna Diária em 6 de janeiro de 2020 a crônica em que este texto se baseou, como parte da série:  “Direito”  x  Sociedade.  Uma saga bandidólatra e totalitária...  Como eu dizia em sua introdução, nem sempre os artigos jurídicos devem ser dirigidos a juristas e operadores do Direito. O Direito rege todos os aspectos da vida do indivíduo e da Sociedade como grupo. Assim sendo, ele pertence ao Povo, que não pode ser afastado dele. Se ele tem sido usurpado de seu verdadeiro titular, queremos contribuir para quebrar esse círculo vicioso de usurpação, destruindo esse anel do mal que tudo faz para retornar ao Senhor do Escuro que, em suas várias formas, sempre pretende impor dominação à Terra Média: como diria Tolkien...  

 

Eu iniciava, assim, uma série de artigos curtos em que queríamos explicar ideias e coisas que acontecem no Direito e que muito prejudicam ou prejudicarão o Povo, servindo  podepara despertar uma visão efetivamente crítica sobre certos assuntos – não aquela “visão crítica” de alguns... professores e outros doutrinadores que consiste em repetir dogmas, chavões e palavras de ordem impostas por eles, mas sim aquele que analisa contradições e desconexão com o mundo real.

 

Este é um assunto que, por vezes, consegue iludir até quem tem os olhos bem abertos, já que sua expressão é feita de forma muito sedutora: o tal “Princípio” do não retrocesso: afinal, quem quer retroceder, andar para trás, ser retrógrado?  Iniciemos os questionamentos.

 

Principiamos retrocedendo a uma pergunta inicial: o que seria retrocesso? 


Esse pretenso princípio costuma estar na boca das mesmas pessoas que entendem que “progressismo” é progresso: ambos misturados na mesma saliva que costumam usar para cuspir, por vezes literalmente, em quem deles discorda.


Notem que quando vão ser feitas leis ou emendas, costuma haver uma série de audiências públicas. Nessas audiências, alguns dizem que uma coisa é progresso e outras dizem que é regresso. No final, o Poder Legislativo, ELEITO PELO POVO, define o que seria melhor segundo seus representantes. O que seria progresso ou regresso acaba assim definido (nem sempre)[1] com base na vontade do povo, por meio das eleições e do debate legislativo surge a Lei Ordinária, a Lei Complementar, a emenda constitucional...


Quando não é assim, ao Povo é negado o poder que dele emana...

 

E o que seria esse tal “princípio” do não retrocesso?


Não pretendemos fazer a análise aprofundada dessa questão. Daremos aqui a definição mais próxima do consensual adotada por aqueles “progressistas” que não desejam “retrocessos”. Quem desejar doutrina mais aprofundada sobre o assunto, pode pesquisar em artigos científicos, obras jurídicas ou, simplesmente, parar sua leitura por aqui: o que recomendamos em especial àqueles que costumam se horrorizar com a introdução de argumentos do mundo real ou de “meros detalhes” como a Sociedade.


Esse “princípio” consistiria na ideia de que o Estado, após ter implementado um direito fundamental, não poderia retroceder, ou seja, não poderia voltar atrás na medida ou nas medidas que teriam efetivado essa implementação. Lindo isso, né? É só usar o “bom senso”... 


Curioso é que muitas vezes os aplicadores desse “princípio” se autodenominam, orgulhosamente, contramajoritários[2] (contrários à maioria do povo) e até portadores da luz que poucos têm. Em síntese: “ter bom senso” significa “pensar luminosamente como eu” e, usando-se tal argumento, retrocesso poderia significar apenas “o que eu não acho bom”. 


Uma vez  exemplifiquei de com as famosas audiências públicas em que uns dizem que uma coisa é progresso e outras dizem que é retrocesso e que os representantes eleitos pelo povo é que definem o que seria melhor: pois é. É democracia. Mas e se for inconstitucional? – você poderia perguntar. Se for inconstitucional, qualquer juiz em caso concreto (incidentalmente) pode considerar inconstitucional e o STF também pode considerar inconstitucional para todos os casos (controle concentrado). 


O problema é que esse tal “princípio” abre a possibilidade de qualquer coisa ser inconstitucional, dependendo apenas da vontade, da ideologia e até do humor do julgador, independente de violar ou não a Constituição: já que tudo viola a Constituição se quem julgar puder se basear apenas em seu achismo: e achar que é meio retrógrado. Entendeu? Um poder acima do escrito na própria Constituição, baseado no que não está escrito, um Princípio Ectoplásmico[3] (eles chamam de implícito)[4]. Aí: só apelando pros caça-fantasmas.


Então, quem é mesmo que vai dizer se uma coisa é retrocesso ou progresso? Quem julgar, e cada um julgará conforme suas convicções, já que não têm limite na Lei, nem na Constituição, mas apenas no suposto e fantasmagórico “princípio” que lhe permite dizer o que é retrocesso e o que é progresso ao seu gosto pessoal: FAZER O QUE QUISER, SEMPRE! Mas não é só isso. Tem mais. Infelizmente, você vai ter que me aturar mais tempo (ou desistir aqui) e pode ter certeza: o pior não será me aturar...

 

Vocês sabem o que é Cláusula Pétrea, Emenda Constitucional, Lei Complementar, Lei Ordinária, decreto do Presidente da República?


Cláusula pétrea é algo que está escrito na versão original da Constituição e que segundo previsto nesse texto original, não pode ser alterado nem por Emenda Constitucional. 


Emenda é uma alteração da Constituição e exige votos de 3/5 dos integrantes de cada casa legislativa em dois turnos (por duas vezes 49 no Senado e 308 na Câmara).


Lei Complementar exige maioria absoluta dos integrantes de cada casa (41 e 257).


A Lei Ordinária exige a maioria simples, que é a maioria, estando presentes 41 no Senado e 257 na Câmara (21 senadores, 129 deputados).


A aplicação do famigerado “princípio” do não retrocesso permite que o STF dê status de Cláusula Pétrea, por exemplo, a algo que jamais passaria por emenda, mas que em uma madrugada com a presença de metade do Congresso foi aprovada como lei ordinária por pouco mais de um quarto de cada casa...  Pior, que ele torn isso uma cláusula pétrea que jamais poderá ser mudada.

 

E o que você acha de permitir que um decreto do presidente vire cláusula pétrea tão logo publicado. Pior: de algum ex-presidente que tenha perdido a eleição inclusive por causa da linha seguida por seus decretos. Pior ainda: uma simples portaria de um ministério...


Sim, com o “princípio” do não retrocesso, podemos imaginar em tese, só para argumentar, um presidente fictício que solte medidas e decretos que desagradam à população por seu conteúdo ideológico e contrário ao interesse popular. Na eleição seguinte o povo não elege seu candidato ao Executivo nem lhe dá maioria no parlamento.  No entanto, se ele indicou muitos membros para os tribunais, nem o novo congresso eleito pelo povo poderá contrariar seus decretos se estes forem protegidos com o lamentável “princípio”, nem os decretos do novo presidente poderão revogá-los: e até portarias e ministros e autarquias poderão ser cláusulas pétreas, deixando o poder de emanar do povo que apenas observará seus votos serem inutilmente colocados na tal da urna eletrônica.


Dentre muitos falsos princípios é, provavelmente, junto com o “axioma” “não há lei sem necessidade”, dogma proposto por Aquele Italiano que Não Deve Ser Nomeado, o que há de mais perigoso, um na esfera geral e um na penal...


Resumindo: o tal “princípio” do não retrocesso consiste, na prática, em uma forma de tirar todo o poder da escolha popular, deslegitimando o Legislativo e o Executivo, eleitos pelo povo e podendo perpetuar no poder uma ideologia que já tenha sido derrotada nas urnas, além de introduzir outras que jamais vingariam no país; pior, pode atingir qualquer aspecto legislado ou regulamentado; o que, em conjunto com o ativismo judicial mais tradicional, completa o ciclo de exercer função legislativa e executiva e limitar ou impedir o exercício delas pelos poderes Executivo e Legislativo. 


E aí, estaremos sujeitos àquela famosa hipótese de Aristóteles sobre o que pode acontecer com a aristocracia...

Deus me proteja de mim,

E da maldade de gente boa,

Da bondade de pessoa ruim.

Deus me governe e guarde ilumine e zele assim.

(Chico César).

 NOTAS


[1] Mas isso pode custar caro nas eleições seguintes...

[2] Isso foi assunto nos capítulos seguintes.

[3] Ectoplasma é a substância da qual são feitos os fantasmas, segundo o filme e o desenho Ghosbusters.

[4] Mas só os clarividentes o veem, hierofantes que são...

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