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Fernando Galvão

Oitiva da vitima do crime perpetrado pela pessoa presa na audiência de custódia

 

O Pleno do Tribunal de Justiça Militar do Estado de Minas Gerais alterou a Resolução n. 168, de 6 de maio de 2016, para reforçar as medidas de proteção às vítimas de violência doméstica e de violência policial. Vale transcrever os artigos 12-A e 12-B, acrescidos pela Resolução n. 311, de 11 de julho de 2024:


Art. 12-A. Com o objetivo de avaliar a situação de risco sofrida pela vítima de violência doméstica e familiar, deve o magistrado considerar as informações constantes no Formulário Nacional de Avaliação de Risco, instituído pela Lei n. 14.149, de 5 de maio de 2021.

§ 1° Sempre que possível, a vítima e a equipe de Patrulha de Prevenção à Violência Doméstica devem ser ouvidas antes da pessoa custodiada.

§ 2° A oitiva a que se refere o parágrafo anterior pode realizar-se por meio de videoconferência, observando-se o disposto no art. 3º desta Resolução.

§ 3° O juiz deve garantir às vítimas o direito à atenção médica e psicossocial eventualmente necessárias, resguardada a natureza voluntária desses serviços, encaminhando-as aos serviços da rede pública de atendimento e acolhimento.

§ 4° Aplica-se o disposto neste artigo em relação às vítimas de violência policial, no que couber.


Art. 12-B. Nos casos de violência doméstica e familiar, o juiz poderá aplicar, além das medidas cautelares previstas no art. 319 do Código de Processo Penal e no art. 22 da Lei n. 11.340/2006, as seguintes medidas:

I - comunicação do fato ao comandante do custodiado e ao comandante da vítima, se for o caso;

II - acompanhamento e apresentação de relatórios periódicos pela equipe de Patrulha de Prevenção à Violência Doméstica.


As novas disposições se conciliam com a finalidade essencial da audiência de custódia, que é analisar a necessidade de converter a prisão em flagrante em prisão preventiva da prática de outros crimes pelo custodiado que é apresentado à autoridade judiciária.

A audiência de custódia foi introduzida na prática judicial brasileira pela Lei n° 13.964, de 2019, que alterou a redação do art. 310 do Código de Processo Penal. Com a alteração passamos a ter as seguintes disposições:


Art. 310. Após receber o auto de prisão em flagrante, no prazo máximo de até 24 (vinte e quatro) horas após a realização da prisão, o juiz deverá promover audiência de custódia com a presença do acusado, seu advogado constituído ou membro da Defensoria Pública e o membro do Ministério Público, e, nessa audiência, o juiz deverá, fundamentadamente:

I - relaxar a prisão ilegal; ou 

II - converter a prisão em flagrante em preventiva, quando presentes os requisitos constantes do art. 312 deste Código, e se revelarem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão; ou 

III - conceder liberdade provisória, com ou sem fiança. 


§ 1° Se o juiz verificar, pelo auto de prisão em flagrante, que o agente praticou o fato em qualquer das condições constantes dos incisos I, II ou III do caput do art. 23 do Decreto-Lei n° 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), poderá, fundamentadamente, conceder ao acusado liberdade provisória, mediante termo de comparecimento obrigatório a todos os atos processuais, sob pena de revogação.          


§ 2° Se o juiz verificar que o agente é reincidente ou que integra organização criminosa armada ou milícia, ou que porta arma de fogo de uso restrito, deverá denegar a liberdade provisória, com ou sem medidas cautelares.       


§ 3° A autoridade que deu causa, sem motivação idônea, à não realização da audiência de custódia no prazo estabelecido no caput deste artigo responderá administrativa, civil e penalmente pela omissão.        


§ 4° Transcorridas 24 (vinte e quatro) horas após o decurso do prazo estabelecido no caput deste artigo, a não realização de audiência de custódia sem motivação idônea ensejará também a ilegalidade da prisão, a ser relaxada pela autoridade competente, sem prejuízo da possibilidade de imediata decretação de prisão preventiva. 


A realização da audiência se concilia com a previsão do art. 9°, item 3, do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos das Nações Unidas, que ingressou na ordem jurídica interna por meio do Decreto no 592, de 6 de julho de 1992. Estabelece o item 3 do referido dispositivo que:


3. Qualquer pessoa presa ou encarcerada em virtude de infração penal deverá ser conduzida, sem demora, à presença do juiz ou de outra autoridade habilitada por lei a exercer funções judiciais e terá o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade. A prisão preventiva de pessoas que aguardam julgamento não deverá constituir a regra geral, mas a soltura poderá estar condicionada a garantias que assegurem o comparecimento da pessoa em questão à audiência, a todos os atos do processo e, se necessário for, para a execução da sentença.


A audiência também se concilia com o art. 7°, item 5, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), que ingressou na ordem jurídica interna por meio do Decreto no 678, de 6 de novembro de 1992. Estabelece o item 3 do referido dispositivo que:


5. Toda pessoa detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada pela lei a exercer funções judiciais e tem direito a ser julgada dentro de um prazo razoável ou a ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo. Sua liberdade pode ser condicionada a garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo.


Como se pode constar do artigo 310 do Código de Processo Penal e dos dispositivos mencionados dos tratados internacionais, o objetivo principal da audiência de custódia é garantir uma rápida apresentação do detido perante o Poder Judiciário, permitindo uma primeira análise sobre a legalidade e a necessidade de manutenção da prisão ou a possibilidade de aplicação de medidas cautelares alternativas.


Os dispositivos permitem concluir que a realização da audiência de custódia está intrinsecamente ligada à observância de direitos humanos fundamentais da pessoa presa, como o direito à rápida apresentação ao juiz para a análise de seu caso e à não manutenção de prisões ilegais ou arbitrárias.


O art. 310 do Código de Processo Penal deixa muito claro que a audiência de custódia não se presta a realizar instrução sobre o crime que é imputado ao preso apresentado ou de crimes eventualmente cometidos pelos policiais na oportunidade de realização da prisão em flagrante. A audiência de custódia não é audiência de instrução em processo de conhecimento criminal.


Embora não se trate de matéria de natureza administrativa ou financeira (artigo 103-B, §4°, da Constituição da República) a realização da audiência de custódia foi regulamentada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), por meio da Resolução n° 213 de 15 de dezembro de 2015.


As diretrizes do CNJ permitem entender que também constitui finalidade da audiência de custódia, além da avaliação sobre a necessidade de manter a prisão preventiva ou substituí-la por outras medidas cautelares, apurar a ocorrência de crimes, como especial interesse pelo de tortura, praticados contra o preso.


Apesar do enfoque da audiência de custódia não ser investigar crimes como a tortura, sua realização contribui indiretamente para a mitigação dessas práticas. Ao garantir que o preso seja apresentado ao juiz em até 24 horas após sua detenção, há uma oportunidade para que sejam reportadas violações aos direitos do preso. A presença de um juiz, de um defensor público ou advogado cria um ambiente seguro para o preso denunciar eventuais abusos sofridos, que posteriormente podem ser investigados pelas autoridades competentes.


É relevante destacar que, conforme estabelecido no art. 8° da Resolução do Conselho Nacional de Justiça, o juiz deve inquirir a pessoa presa sobre “o tratamento recebido em todos os locais por onde passou antes da apresentação à audiência, questionando sobre eventual tortura e maus tratos, para a adoção das providências cabíveis” (alínea ‘e’ de seu inciso VII). O dispositivo tem redação conferida pela Resolução n. 562, de 3.6.2024, que aprimorando as disposições originais da Resolução 213, amenizam o foco para uma atividade instrutória que se pretende na audiência.  


Certamente, obrigação de tomar a iniciativa na apuração da prática de eventual tortura coloca o juiz na posição de investigador ativo de persecução penal que, em muitos casos, será posteriormente submetida à sua jurisdição.


Em anexo a Resolução 213 do CNJ, consta o Protocolo II que trata dos procedimentos para oitiva, registro e encaminhamento de denúncias de tortura e outros tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes. Em seu item 3, que trata especificamente dos procedimentos relativos à coleta de informações sobre práticas tortura durante a oitiva da pessoa custodiada, o Protocolo registra que “sendo um dos objetivos da audiência de custódia a coleta de informações sobre práticas de tortura, o Juiz deverá sempre questionar sobre ocorrência de agressão, abuso, ameaça, entre outras formas de violência, ...”


A afirmação constante do Protocolo se apresenta conflitante com o disposto no § 2° do art. 8° da Resolução 213, que impede a atividade instrutória do magistrado na audiência de custódia. O referido dispositivo registra que:


§ 2° A autoridade judicial não realizará qualquer iniciativa probatória quanto à imputação à pessoa presa, abstendo-se, no ato da audiência de custódia, de formular perguntas com a finalidade de produzir prova para a investigação ou ação penal, inclusive no que tange a eventual confissão, zelando para que os demais participantes adotem o mesmo procedimento.


A orientação também deveria se aplicar em relação aos eventuais crimes praticados pelos policiais que apresentam o preso.


De fato, o art. 310 do Código de Processo Penal não confere e não sugere que o juiz tenha poderes instrutórios na audiência de custódia.


Em ambiente seguro, longe dos agentes que efetuaram a prisão, caso o preso se apresente ao juiz com sinais indicativos da ocorrência de agressões, se alega a ocorrência de tortura, o magistrado e o representante do Ministério Público devem encaminhar as devidas providências.


A orientação para que o juiz tome iniciativas investigatórias viola o sistema acusatório e ainda sugere que as prisões são efetuadas ordinariamente com emprego de tortura, bem como que a audiência é realizada para apurar a prática de tortura pelos policiais que ali são considerados suspeitos. Esta presunção não se concilia com a previsão legal para a realização da audiência de custódia e compromete a imparcialidade do órgão julgador.


Havendo motivos concretos para acreditar na possibilidade da ocorrência de crimes contra a pessoa presa apresentado, cabe o representante do Ministério Público determinar ou realizar a apuração pertinente. A apuração pode iniciar com as perguntas formuladas pelo Ministério Público na audiência e prosseguir com a instauração do devido procedimento investigatório. Cabe ao Ministério Público o controle externo da atividade policial (art. 129, inciso VII, da Constituição da República).


Não é adequado que o juiz substitua o Ministério Público na apuração de fatos que não foram submetidos à sua jurisdição por meio do devido processo legal.


Na audiência, o preso e o seu caso devem ser apresentados ao juiz. Em obediência ao sistema acusatório, cabe ao Ministério Público sustentar a necessidade de manutenção da prisão cautelar ou da substituição da prisão por outra medida cautelar menos gravosa. Cabe à defesa se contrapor à pretensão ministerial. Na inquirição do preso, as perguntas devem expressar essencialmente a atuação das partes. Sobre os pontos não esclarecidos, o juiz poderá complementar a inquirição, nos termos do que preconiza o parágrafo único do art. 212 do CPP.  


 Esta visão critica das funções do juiz na audiência de custódia visa aprimorar o sistema acusatório, preservando a imparcialidade do julgador.


Na audiência de custódia, o papel do juiz é fundamental para garantir a proteção dos direitos de todos os envolvidos, incluindo não somente a pessoa presa como também a vítima do crime por ela praticado. A análise criteriosa sobre a necessidade de converter a prisão em flagrante em prisão preventiva deve ser realizada com base em uma compreensão ampla e detalhada do contexto em que os fatos ocorreram. Para alcançar essa compreensão, é essencial que a vítima seja ouvida durante a audiência de custódia.


A Resolução n. 213 do Conselho Nacional de Justiça dispõe, no art. 8°, inciso IX, alínea ‘f’, que cabe ao juiz “a adoção de medidas de proteção ou de assistência à vítima, podendo encaminhá-la ao Núcleo de Atendimento de Assistência Social do juízo, se houver.”


No entanto, a alteração produzida na Resolução 213 não contemplou a possibilidade/necessidade da oitiva da vitima do crime praticado pela pessoa presa que é apresentada ao juízo. No art. 11 da referida Resolução constam medidas para a investigação de possível crime praticado contra a pessoa presa apresentada, que passa a ser tratada como vítima. No mesmo sentido, o Protocolo anexo à Resolução somente trata da autodeclarada vitima da tortura policial. Não se observa em relação à vitima do crime praticado pela pessoa presa apresentada em juízo a mesma consideração.


Ouvir a vítima proporciona ao juiz uma visão mais ampla e detalhada do conflito instaurado, considerando informações que não se restringem à versão apresentada pelo preso. A vítima pode fornecer informações cruciais sobre o comportamento do preso, o impacto emocional e físico do crime e as circunstâncias que não são visíveis nos registros policiais ou no relatório do flagrante.


A participação da vítima pode revelar comportamentos anteriores do preso que indicam um padrão de violência ou ameaça. A vítima pode relatar ameaças prévias ou a concreta possibilidade de o preso tentar intimidá-la novamente. Essas informações são essenciais para que o juiz possa avaliar o risco de reiteração criminosa, um dos critérios fundamentais para a conversão da prisão em flagrante em prisão preventiva.


 A principal função do sistema de justiça penal é proteger todos os cidadãos. Ouvir a vítima permite ao juiz compreender o grau de sua vulnerabilidade as medidas necessárias para sua proteção. Em casos de violência doméstica, por exemplo, o depoimento da vítima pode ser decisivo para a implementação de medidas protetivas efetivas.


A vítima também pode fornecer informações que auxiliem o juiz a avaliar a possibilidade de fuga do preso ou de obstrução do processo penal. A preservação da aplicação da lei é um pilar fundamental da justiça, e o testemunho da vítima pode fornecer elementos que justifiquem a manutenção do preso sob custódia para garantir a efetividade do processo.


A audiência de custódia deve ser um espaço onde todas as partes envolvidas tenham a oportunidade de se manifestar. E isso inclui o preso, sua defesa técnica, o Ministério Público e, igualmente importante, a vítima do crime perpetrado. Ao ouvir a vítima, o juiz promove um equilíbrio de perspectivas, assegurando que a decisão seja baseada em uma análise imparcial e abrangente dos fatos.


Ouvir a vítima durante a audiência de custódia é uma prática essencial para a justiça. Isso não apenas enriquece a compreensão do juiz sobre a necessidade de manutenção da prisão cautelar e, em especial, de proteção à vítima e a integridade do processo penal. A consideração das informações prestadas pela vítima garante uma decisão mais informada e justa, refletindo o compromisso do sistema judiciário com a segurança e os direitos de todos os cidadãos.


Com as alterações promovidas em sua Resolução sobre a audiência de custódia, o Tribunal de Justiça Militar de Minas Gerais dá mais um importante passo para a consolidação de sua visão institucional: ser reconhecida pela sociedade como uma justiça especializada essencial para a promoção da paz e o fortalecimento do estado democrático de direito.


Fernando Galvão é Desembargador Civil do Tribunal de Justiça Militar do Estado de Minas Gerais e Professor Titular de Direito Penal da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais.

 

 

 

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