Nos últimos 60 dias causou um certo frisson na mídia, o fato de que ao menos dois pedidos de acesso à informação foram negados por órgãos da Administração Direta Federal por estarem sob sigilo de 100 (cem) anos, ao fundamento de que continham informações pessoais, estando então a negativa de acordo com a Lei de Acesso à Informação[1].
No primeiro deles, o Exército negou acesso ao processo administrativo arquivado pelo qual passou o general da ativa e ex-ministro da Saúde, no qual ele seria julgado pela corporação por ter participado de um ato político ao lado do presidente da República, no final de maio, no Rio de Janeiro. Pelo regulamento do Exército, é proibido que militares da ativa participem de manifestações político-partidárias, sujeito a punições. As informações são do jornal O Globo, que solicitou o acesso ao processo[2].
Já na segunda negativa, a revista "Crusoé" solicitou, via Lei de Acesso à Informação (LAI), a "relação de filhos do Presidente da República que possuem ou possuíram cartões de identificação que dão ingresso às leitoras e vias de passagem do Palácio do Planalto e Anexos, acompanhada da respectiva data de emissão e de devolução do cartão de acesso entre 2003 e 2021". A Secretaria-Geral da Presidência da República respondeu impondo sigilo centenário às informações alegando que as informações solicitadas dizem respeito “à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem dos familiares do Senhor Presidente da República, que são protegidas com restrição de acesso, nos termos do artigo 31 da Lei nº 12.527, de 2011"[3].
Partindo da Constituição Federal, que deve ser sempre o norte de qualquer direito ou garantia, veremos que o art. 5º, inciso XXXIII assevera, de forma cristalina, que todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado.
Quanto à informação de interesse particular é aquela que diz respeito direto ao solicitante, e não enseja dúvida quanto ao direito do interessado em obtê-la. Já as informações de interesse coletivo ou geral são aquelas que interessam a todos, mas é bom que se diga, não significa que sejam elas abertas ao publico em geral, necessitando seguir o procedimento previsto na própria lei de acesso à informação.
Portanto, é de se perguntar: tem razão de ser o sigilo centenário que foi imposto? A resposta sugere um passeio pela Lei de Acesso à Informação - LAI.
Com efeito, o art. 1º, da Lei 12.527/2011, dispõe sobre os procedimentos a serem observados pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios, com o fim de garantir o acesso a informações previsto no inciso XXXIII do art. 5º , no inciso II do § 3º do art. 37 e no § 2º do art. 216 da Constituição Federal. Nos termos de seu parágrafo único, subordinam-se ao regime desta Lei: I - os órgãos públicos integrantes da administração direta dos Poderes Executivo, Legislativo, incluindo as Cortes de Contas, e Judiciário e do Ministério Público; II - as autarquias, as fundações públicas, as empresas públicas, as sociedades de economia mista e demais entidades controladas direta ou indiretamente pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios.
Parece não restar dúvidas que tanto o Exército como a Secretaria-Geral da Presidência integram a Administração Direta do Poder Executivo Federal e, portanto, estão submetidos também ao Império da Lei. A Secretaria-Geral da Presidência da República (SGPR) é um dos órgãos que compõem a Presidência da República. Com status de Ministério, a pasta funciona no Palácio do Planalto, enquanto que o Exército Brasileiro integra o conjunto das Forças Armadas ao lado da Marinha e Aeronáutica, cujo tratamento é dado pelo art. 142 da Constituição Federal.
Os dois entes jurídicos, no entanto, assim como a própria Presidência da República, são representados pela Advocacia-Geral da União, dispondo o art. 131, da CF, que a Advocacia-Geral da União é a instituição que, diretamente ou através de órgão vinculado, representa a União, judicial e extrajudicialmente, cabendo-lhe, nos termos da lei complementar que dispuser sobre sua organização e funcionamento, as atividades de consultoria e assessoramento jurídico do Poder Executivo.
Pois bem, o dispositivo legal para a imposição do sigilo de 100 anos é o art. 31 da LAI, segundo o qual o tratamento das informações pessoais deve ser feito de forma transparente e com respeito à intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas, bem como às liberdades e garantias individuais. Por sua vez, seu § 1º assevera que as informações pessoais, a que se refere este artigo, relativas à intimidade, vida privada, honra e imagem: I - terão seu acesso restrito, independentemente de classificação de sigilo e pelo prazo máximo de 100 (cem) anos a contar da sua data de produção, a agentes públicos legalmente autorizados e à pessoa a que elas se referirem; e II - poderão ter autorizada sua divulgação ou acesso por terceiros diante de previsão legal ou consentimento expresso da pessoa a que elas se referirem.
100 (cem) anos é um tempo considerável há que se convir. Vejam que é a própria lei que estabelece graus e tempo máximos de sigilo de acordo com a natureza da informação pretendida.
Assim, nos termos do art. 24, a informação em poder dos órgãos e entidades públicas, observado o seu teor e em razão de sua imprescindibilidade à segurança da sociedade ou do Estado, poderá ser classificada como ultrassecreta, secreta ou reservada.
O § 1º assevera que os prazos máximos de restrição de acesso à informação, conforme a classificação prevista no caput, vigoram a partir da data de sua produção e são os seguintes: I - ultrassecreta: 25 (vinte e cinco) anos; II - secreta: 15 (quinze) anos; e III - reservada: 5 (cinco) anos.
Antes disso, o art. 23 já dispôs que são consideradas imprescindíveis à segurança da sociedade ou do Estado e, portanto, passíveis de classificação as informações cuja divulgação ou acesso irrestrito possam:I - pôr em risco a defesa e a soberania nacionais ou a integridade do território nacional; II - prejudicar ou pôr em risco a condução de negociações ou as relações internacionais do País, ou as que tenham sido fornecidas em caráter sigiloso por outros Estados e organismos internacionais; III - pôr em risco a vida, a segurança ou a saúde da população; IV - oferecer elevado risco à estabilidade financeira, econômica ou monetária do País; V - prejudicar ou causar risco a planos ou operações estratégicos das Forças Armadas; VI - prejudicar ou causar risco a projetos de pesquisa e desenvolvimento científico ou tecnológico, assim como a sistemas, bens, instalações ou áreas de interesse estratégico nacional;VII - pôr em risco a segurança de instituições ou de altas autoridades nacionais ou estrangeiras e seus familiares; ou VIII - comprometer atividades de inteligência, bem como de investigação ou fiscalização em andamento, relacionadas com a prevenção ou repressão de infrações.
Não é difícil constatar, entretanto, que o art. 31 da Lei de Acesso à Informação se mostra completamente carente de razoabilidade e proporcionalidade, estando em rota de colisão com os antecedentes artigos que autorizam e classificam as informações estipulando os prazos máximos de restrição ao acesso. Mais que isso, assume ares de inconstitucionalidade (ofensa ao art. 5º, inciso XXXIII da Carta Magna), visto que são ressalvadas apenas aquelas informações cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado.Ademais, a classificação indevida do sigilo centenário pode representar um acinte da parte daquele que classificou (a classificação centenária repetida por entes diversos sugere uma indevida ordem superior), também ser indício de desvio de finalidade, o qual, se constatado implica em impropriedade administrativa[4].
Se tomarmos por base o sigilo centenário da apuração da falta disciplinar em tese cometida pelo oficial-general[5], veremos que as questões disciplinares envolvendo oficiais das Forças Armadas já possuem um caráter reservado, previsto no art. 36 do Regulamento Disciplinar do Exército, segundo o qual a publicação da punição disciplinar imposta a oficial ou aspirante-a-oficial, em princípio, deve ser feita em boletim reservado, podendo ser em boletim ostensivo, se as circunstâncias ou a natureza da transgressão assim o recomendarem. Daí decorre que inexistindo punição a ser aplicada, a solução da apuração continua sendo reservada – as Forças Armadas estão organizadas com base na hierarquia e disciplina, e as questões disciplinares dos oficiais são sempre publicadas em boletim reservado, dele tomando conhecimento somente seus pares e superiores, nunca os subordinados, salvo quando a natureza da infração assim recomendar, inexistindo interesse coletivo ou geral na apuração da falta em tese. Só por isso já era suficiente ao Exército negar o acesso para o órgão de imprensa solicitante. Mas impor sigilo de 100 anos é jogar o disco longe demais, pois a toda evidência, uma mera apuração de falta disciplinar não teria o condão de ganhar um prazo quatro vezes maior do que uma informação “ultrassecreta”, cujo prazo de sigilo é de 25 anos, que já sendo por si só longo é, no entanto quatro vezes menor!
Em relação ao sigilo centenário imposto aos acessos de filhos de presidente no período de 2003-2021 (período fixado pelo órgão de imprensa solicitante), melhor sorte também não socorre à inusitada imposição. É que o § 2º, do art. 24, da LAI, dispõe que as informações que puderem colocar em risco a segurança do Presidente e Vice-Presidente da República e respectivos cônjuges e filhos(as) serão classificadas como reservadas e ficarão sob sigilo até o término do mandato em exercício ou do último mandato, em caso de reeleição, e aí, uma vez mais o art. 31 demonstra seu descompasso com a própria lei. Cabe aqui, no entanto, outra observação, pois em que pese poder ser considerada de interesse coletivo e geral a informação, parece não haver dúvida que a rotina do Palácio do Planalto não se apresenta como algo que possa ser acessado a qualquer momento, sendo imprescindível a justificação dos motivos pelos quais o requerente deseja o acesso, mesmo porque, o inciso VII do art. 23 da lei assevera que são consideradas imprescindíveis à segurança da sociedade ou do Estado e, portanto, passíveis de classificação as informações cuja divulgação ou acesso irrestrito possam: - pôr em risco a segurança de instituições ou de altas autoridades nacionais ou estrangeiras e seus familiares.
A lei de acesso à informação prevê procedimento recursal em caso de recusa, mas de vital importância destacar que não poderá ser negado acesso à informação necessária à tutela judicial ou administrativa de direitos fundamentais (art. 21), e a toda evidência não existirá restrição quando a informação for fornecida em cumprimento de ordem judicial (art. 31, § 3º, III). Ou seja, mesmo o inusitado sigilo centenário poderá ser retirado por força de ordem judicial, claro desde que julgado procedente o pedido feito à Justiça.
Ou seja, uma vez negada a informação, não havendo solução na esfera administrativa, o caminho a ser tomado pelo interessado é valer-se do direito constitucional do acesso ao Judiciário[6]. Mas não é só isso, o sigilo centenário não tem o condão de impedir a correta atuação da atividade de polícia judiciária, nem muito menos a ação controladora do Ministério Público quando existentes indícios de infração penal ou violação de qualquer direito. Em relação ao Ministério Público, para além de ser o promotor exclusivo da ação penal pública, é principalmente o defensor da ordem jurídica, do regime democrático e dos direitos sociais e individuais indisponíveis, não podendo aceitar de forma alguma que ela seja interpretada de acordo com interesses que porventura se apresentem ilegítimos.
À guisa de conclusão e, parodiando o título deste pequeno ensaio, é possível perguntar: Pode isso, Arnaldo e responder sem hesitação: π Não pode, não pode não pode não, não pode não, a regra é clara não pode não π, além de estar em contrariedade com a própria Lei ainda ofende a Constituição!
Jorge Cesar de Assis é advogado inscrito na OAB-PR. Membro aposentado do Ministério Público Militar da União. Integrou o Ministério Público paranaense. Oficial da reserva não remunerada da Polícia Militar do Paraná. Sócio -Fundador da Associação Internacional de Justiças Militares e atualmente seu Secretário-Geral. Membro correspondente da Academia Mineira de Direito Militar. Coordenador da Biblioteca de Estudos de Direito Militar da Editora Juruá. Administrador do site www.jusmilitaris.com.br .
NOTAS
[1] Lei 12.527, de 18.11.2011, que regula o acesso a informações previsto no inciso XXXIII do art. 5º, no inciso II do § 3º do art. 37 e no § 2º do art. 216 da Constituição Federal; altera a Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990; revoga a Lei nº 11.111, de 5 de maio de 2005, e dispositivos da Lei nº 8.159, de 8 de janeiro de 1991; e dá outras providências. Está regulamentada pelo Decreto nº 7.724, de 16 de maio de. 2012 [2] Noticiado pela Revista ISTOÉ. Disponível em https://istoe.com.br/exercito-impoe-sigilo-de-100-anos-para-processo-administrativo-de-pazuello/ acesso em 04.08.2021. [3] Noticiado pelo G1-POLÍTICA. Disponível em https://g1.globo.com/politica/noticia/2021/07/31/governo-impoe-sigilo-de-cem-anos-sobre-crachas-de-acesso-dos-filhos-de-bolsonaro-ao-planalto.ghtml acesso em 04.08.2021. [4] Lei 8.429 de 02.06.1992, art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições, e notadamente: I - praticar ato visando fim proibido em lei ou regulamento ou diverso daquele previsto, na regra de competência; [5] A questão foi levada ao Supremo Tribunal Federal, vide ADPF 852, ajuizada pelo Partido dos Trabalhadores – PT; Partido Comunista do Brasil – PCdoB; Partido Socialismo e Liberdade – PSOL e Partido Democrático Trabalhista – PDT. Autuada em 14.06.2021, relatora Min. Carmen Lúcia. [6] CF, art. 5º XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.
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